sexta-feira, 2 de setembro de 2016

ESTUDO DE CASO: Criança de dois anos morre depois da ingestão de achocolatado




O CASO

No dia 25 de agosto de 2016, uma criança faleceu depois da ingestão de um achocolatado. O caso chamou a atenção da vigilância sanitária e das autoridades policiais. Inicialmente acreditou-se que o produto poderia estar contaminado ou envenenado desde o processo de produção. Tal hipótese, entretanto, foi descartada. As autoridades policiais passaram a trabalhar com a tese de envenenamento. Seguindo por este caminho, chegou-se a seguinte narrativa: Adones José Negri, 61 anos, cansado de ser constantemente furtado por um conhecido assaltante da região, teria resolvido se vingar. Sabendo que Deuel de Resende Soares (27 anos), por ocasião dos furtos, costumava tomar achocolatados, Adones teria misturado veneno de rato nos referidos produtos – 6 (seis), no total - esperando que, outra vez assaltado, o bandido acabasse por envenenar a si mesmo quando da ingestão dos achocolatados furtados. O problema é Adones não contava que o ladrão, depois de roubar tais produtos, os vendesse para outrem, como narrado pela imprensa. Os produtos envenenados teriam sido comprados pelo pai de uma criança de 2 (dois) anos. Depois de consumir o achocolatado em família, tanto a criança, quanto sua mãe e um tio, começaram a passar mal. Os adultos sobreviveram; a criança, tragicamente, veio à óbito (FONTE).


Considerando verdadeiras e precisas as informações oferecidas pela imprensa e salientando que a superveniência de novas provas pode mudar substancialmente a análise, qual seria o melhor tratamento jurídico-penal para o este caso?


ANÁLISE DO CASO
Trata-se de situação de erro de execução com resultados diversos do pretendido (arts. 73 e 74 do Código Penal), no que, confirmada a versão narrada pela imprensa, Adones pretendia envenenar Deuel com o propósito de se vingar pelos constantes furtos, porém, por falha na execução do plano, ao invés de intoxicar a vítima pretendida, acabou por levar ao envenenamento de uma família e, dentre estes, a morte de uma pequena criança. Conforme disposto no art. 73 do Código Penal, “quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3º do art. 20 deste Código”. Note-se que, além disso, ocorreram resultados diversos do pretendido, a saber, a intoxicação de outras duas pessoas – a mãe e o tio da criança – sendo o caso de aplicação do art. 74 do Código Penal que estabelece “quando, por acidente ou erro na execução do crime, sobrevém resultado diverso do pretendido, o agente responde por culpa, se o fato é previsto como crime culposo; se ocorre também o resultado pretendido, aplica-se a regra do art. 70 deste Código”.


Tratando-se, primeiramente, do falecimento da criança. Conforme os retromencionados dispositivos do Código Penal, Adones responderá pelo envenenamento do menor – que não pretendia - como se tivesse, efetivamente, intoxicado a vítima desejada, no caso, Deuel. Resta, porém, uma dúvida pertinente que não foi esclarecida pela matéria jornalística. Qual era o resultado pretendido por Adones? Será que pretendia matar ou somente lesar a saúde e a integridade física de Deuel? A dúvida é pertinente na medida que resolvida neste ou naquele sentido mudará significativamente a tipificação do delito.


Se o propósito da Adones era matar o habitual ladrão que furtava a sua dispensa, deverá responder pelo crime de homicídio qualificado pela utilização de meio insidioso (veneno) nos termos do art. 121, §2º, III do Código Penal. Se a vontade de Adones era provocar, tão somente, lesões, ainda que graves, tratar-se-ia de hipótese de lesão corporal. Como da lesão dolosa teria decorrido a morte da vítima – mesmo que não seja a pretendida – aplicar-se-ia a qualificadora pelo resultado morte (art. 129, §3º do Código Penal). 


Salienta-se que não é tarefa simples determinar o dolo de Adones, mas a prova pericial poderá oferecer alguns esclarecimentos. Verificando a concentração da substância venenosa nos achocolatados, poderão ser encontrados indícios que fundamentem esta ou aquela tese. Uma avaliação preliminar, entretanto, faz-me inclinar para hipótese de homicídio por dolo direto ou, ao menos, por dolo eventual. Entretanto, como destacado, tal hipótese deve ser reafirmada à luz de novas provas, seja uma eventual confissão, sejam decorrentes de exames periciais.


No caso da intoxicação da mãe e do tio da criança, conforme a inteligência do art. 74 do Código Penal, seria o caso de lesões corporais culposas, vez que o resultado diverso do pretendido deve ser imputado a título de culpa.


Alguns destaques fazem-se necessários para evitar equívocos.


Não há de se falar de erro sobre a pessoa (art. 20, §3º do Código Penal), afinal, Adones não confundiu a criança com a pessoa que pretendida envenenar. A conduta recaiu sobre a vítima indesejada em razão de falha inerente ao planejamento da conduta, o que constitui erro sobre a execução (art. 73 do Código Penal).


Não há de se falar em legítima defesa preordenada (ofendículos), por dois motivos: (i) o desejo de Adones não era evitar que um crime fosse com ele praticado. Pelo contrário, desejava que o crime de furto acontecesse novamente para, com isso, envenenar o ladrão que habitualmente o assaltava. (ii) mesmo que existisse hipótese de legítima defesa preordenada, a utilização do veneno constituir-se-ia em flagrante excesso de causa justificante, que demanda responsabilidade penal nos termos do art. 23, parágrafo único do Código Penal.


Não há de falar na tipificação da conduta nos termos do art. 270 do Código Penal (envenenamento de substância de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal). A razão é simples. No caso do art. 270 do Código Penal as vítimas devem ser, necessariamente, pessoas indeterminadas. Como no caso analisado, o agente estaria visando atingir uma pessoa individualmente considerada, o seu ladrão contumaz, não há de se falar na tipificação de crime contra a Saúde Pública, mesmo que ele não tenha atingido a vítima desejada, por imposição das regras relativas ao erro sobre a execução.

É possível dizer da responsabilidade penal de Deuel pela prática do furto (art. 150 do Código Penal) e, teoricamente, não podemos afastar a hipótese do pai da criança ter incorrido na prática de receptação (art. 180 do Código Penal). Mas a análise pormenorizada de tais apontamentos não é o objeto principal deste texto.


Poder-se-ia dizer, entretanto, da aplicação da causa de diminuição de pena constante no art. 121, §1º do Código Penal, desde que demonstrado que o agente, entendo estar justificado pela condição de vítima crônica, resolveu fazer justiça com os próprios achocolatados. Seria argumentável que estaria agindo motivado por relevante moral. Evidente que devemos aguardar novos elementos de convicção para confirmar esta hipótese.



CONCLUSÃO

Destacando que as conclusões são baseadas hipóteses e que devem ser confirmadas por provas que surjam no curso das investigações, podemos dizer que se trata de caso de erro sobre a execução (art. 73 do Código Penal), no que o agente deverá ser responsabilizado pelo crime de homicídio qualificado pelo uso de meio insidioso (art. 121, §2º, III do Código Penal) ou, ao menos, o crime de lesão corporal qualificada pelo resultado morte (art. 129, §3º do Código Penal). A primeira hipótese parece ser mais plausível. No caso das outras vítimas, por disposição do art. 74 do Código Penal, seria de se tipificar dois crimes de lesão corporal culposa (art. 129, §6º do Código Penal). Todos estes delitos em situação de concurso formal de crimes (art. 70 do Código Penal).

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