segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal ou excesso reprovável? [ATUALIZADO]


Manifestações contra a Copa do Mundo de 2014 tomaram as ruas de muitas capitais brasileiras no dia 25 de janeiro. Novamente, cenas de vandalismo e violência foram observadas. Apesar da fantástica cena na qual os manifestantes ateiam fogo num Fusca no qual cinco pessoas, inclusive uma criança, faziam sua viagem, o que toma conta dos noticiários neste início de semana é o caso de Fabrício Proteus Nunes Fonseca Mendonça Chaves, participante da manifestação, que foi baleado por policiais na esquina da rua Sabará com a Piauí, em São Paulo, capital.

Segundo a autoridade policial, Fabrício e outro rapaz de 25 anos foram abordados por policiais. No que o companheiro permaneceu detido, Fabrício empreendeu tentativa de fuga no que foi capturado por dois policiais. Revistado, teria sido encontrado artefato incendiário em sua mochila. Durante a revista, o rapaz lançou-se em nova tentativa de evasão após agredir um policial. Dois policiais iniciam uma nova perseguição até que o Fabrício, de súbito, teria se virado e atacado com estilete um de seus perseguidores. Enquanto um policial restava derrubado por Fabrício, o outro disparou duas vezes, acertando Fabrício no tórax e na virilha. A chegada doutro policial marca também a nova tentativa de fuga do Fabrício. Entretanto, agora ferido, é somente acompanhado pelos três policiais até que se senta novamente no chão esperando atendimento médico. No que demora o atendimento pelo SAMU, os próprios policiais, contrariando a proibição de conduzir feridos, o encaminham para um hospital no que Fabrício é atendido. 

Sobre os fatos anteriores à imagem não há muito do que se falar até a apuração dos fatos. Entretanto, sobre o momento dos disparos, é possível alguma especulação em razão da divulgação de imagens derivadas de uma câmera de segurança.
  
As imagens do ocorrido foram apresentadas no Fantástico no dia 26 de janeiro de 2014, no qual o fato foi apresentado através da divulgação de vídeo de segurança que gravou o momento no qual disparos são desferidos contra o jovem. Observe no vídeo acima à partir dos 2 minutos e 33 segundos até 3 minutos e 28 segundos.

A gravação do fato, nesta situação, permite esclarecer uma parte da ocorrência e fomenta a discussão: Estaríamos observando cenas referentes à uma situação de legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal ou um excesso punível praticado pelos policiais?

Preliminarmente é interessante destacar que mesmo contando com a gravação em vídeos do fato em pauta, restam inconclusivas algumas partes da narrativa.

De qualquer modo, para responder tal questão o socorro ao vídeos é indispensável. Desde o vídeo é possível reconhecer alguns fatos: (1), Fabrício Proteus Nunes Fonseca Mendonça Chaves estava fugindo de dois policiais; (2) O fugitivo se vira bruscamente e faz carga contra um dos policiais que vai ao chão; (3) Um dos policiais dispara duas vezes contra Fabrício; (4) Fabrício cai ao lado de um dos policiais; (4) Outro policial chega ao local; e (5) Fabrício tenta se levantar, no que é acompanhado pelos policiais até o momento em que cai novamente no chão.
 
Para responder esta pergunta é necessário se perguntar qual o autor dos disparos. Sendo o policial derrubado pelo agressor a resposta será uma (legítima defesa), sendo o outro que estava ao lado, tratar-se-á de estrito cumprimento do dever legal.

No primeiro caso - dos disparos deflagrados pelo próprio policial agredido - a questão mostra-se mais simples. Os requisitos da legítima defesa própria presentes no art. 25 do CP ("Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem") são evidentes, a saber: (1) injusta agressão; (2) atual; (3) direito próprio - integridade física e vida do policial; (4) meios necessários - arma de fogo; e (5) utilização moderada dos meios necessários.

De todos os elementos indispensáveis à caracterização da legítima defesa, no presente caso, o único passível de dúvida é a utilização moderada. Será que os dois disparos do policial, no momento em que supostamente era agredido com arma branca, podem ser considerados como uma ação nos limites da moderação?

A circunstância de ataque de agressor armado com objeto cortante, por si só, não justifica qualquer resposta. Porém, considerando o contexto do ataque, é de se considerar razoável que um policial temesse por sua própria vida e utilizasse os meios disponíveis para repelir a agressão. Por outro lado, não parece que a policial derrubado e lutando com uma pessoa armada com um estilete ou canivete fosse exigido, nessa situação de extremo perigo, que deixasse de lado a arma de fogo e escolhesse outro meio menos gravoso durante uma agressão atual potencialmente fatal. O policial, nesta específica situação de risco iminente à vida e integridade física, estaria acobertado pela causa justificante da legítima defesa quando da utilização da arma de fogo para repelir a injusta agressão. Neste caso, observam-se presentes os requisitos indispensáveis para a verificação de uma legítima real.

Por um lado, se o agressor não estava armado, o quadro jurídico muda sensivelmente. Poder-se-ia dizer duma situação de legítima defesa putativa (descriminante putativa, nos termos do art. 21, § 1º do CP), ou, ainda, excesso punível, conforme naquele caso o policial suponha erroneamente que o agressor estivesse armado, conforme neste, saiba que o agressor estava desarmado.

Por outro lado, se o policial que disparou foi outro que não o agredido e partindo da hipótese de que a abordagem da autoridade policial foi legítima é possível reconhecer, a princípio, a causa justificante do estrito cumprimento do dever legal.

Por que não legítima defesa? A dúvida entre legítima defesa e o estrito cumprimento do dever legal, neste caso, é compreensível. Pelo filmagem é inconteste que o Fabrício interrompe a fuga para atacar um dos policias, derrubando-o no chão. Trata-se de uma evidente injusta agressão contra o agente policial. Mas, a análise do ação do policial que efetua os disparos é suficiente para afastar qualquer confusão.

É importante destacar que, em caso de legítima defesa de terceiro, o defensor não é obrigado legalmente a realizar a proteção do injustamente agredido. Por outro lado, no caso, o policial que defendeu o colega atacado não tinha essa faculdade. Dito de outra maneira: o policial que observa a agressão de uma pessoa (policial ou cidadão qualquer) não possui a prerrogativa de escolher defender ou omitir-se. O policial possui o dever legal de atuar na defesa do injustamente agredido. Apesar da imprensa leiga noticiar a questão no âmbito da legítima defesa, desta, portanto, não se trata. Com acerto, deve-se analisar o caso desde o instituto do estrito cumprimento do dever legal.

Note-se, porém, que, pelas imagens da filmagem, resta  inconclusivo se Fabrício estava fazendo uso de estilete quando do ataque. Tal hipótese, entretanto, faz-se plausível e provável, considerando, não somente os depoimentos dos policiais, mas também informação de familiares de que Fabrício costumava portar estilete. O fato é que a atuação dos policiais, a princípio e teoricamente, se enquadra dentro de uma das causas justificantes previstas no art. 23 do Código Penal, a saber, o estrito cumprimento de dever legal.

Teria ocorrido excesso nos termos do art. 23, parágrafo único do CP? 

O presidente da Comissão de Direito Penal da OAB/SP é no sentido da ocorrência de um excesso punível: "Os policiais estavam em maior número e usaram arma de fogo, que não é muito razoável em relação a um estilete".

Note-se que, ainda que a superioridade numérica e de poder ofensivo devam ser levadas em conta, estas variáveis, tão somente, não possuem o condão de afirmar a ocorrência de um excesso punível. Como observa-se na gravação, Fabrício se volta bruscamente e agride um dos policiais que vai ao chão sem demonstrar reação. SE é verdade que o jovem estava já agredindo um dos policiais com um estilete, a pronta reação com os meios disponíveis - mesmo que seja uma arma de fogo - pode bem ser justificada dentro da utilização moderada da violência para salvar a vida do policial atacado. Exigir que o policial ponha de lado a arma de fogo para tentar desvencilhar o atacante do agredido não parece ser razoável dada a urgência da situação.

Deve-se considerar a correção da observação da professora Heloisa Estellita: "Para os policiais, essa proporcionalidade é mais severa porque eles são treinados para conter os próprios impulsos. Se ele pudesse dominar fisicamente [o menino], sem usar nenhuma arma, essa medida é a que estaria dentro do dever dele". O policial, enquanto uma funcionário público especialmente treinado para lidar com tais situações, possui uma especial responsabilidade de conter agressões injustas da forma menos gravosa possível dadas as circunstâncias. Dito desta forma, a questão fundamental para a determinação da ocorrência de um excesso punível reside no juízo de razoabilidade da atuação policial e da utilização moderada e necessária dos meios disponíveis. Se é verdade que o agressor utilizava uma arma branca, a resposta mais rápida e decisiva possível parece ser justificável.

Destaca-se que o policial que efetuou os disparos contra Fabrício, no momento em que o jovem deixou de agredir o policial caído, abandona qualquer atuação violenta, fazendo crer que usou dos disparos com o único propósito de defender aquele que caído estaria sendo injustamente atacado. Tal fato corrobora a tese da inocorrência do excesso punível.

Por outro lado, se o jovem agressor não estava portando estilete qualquer - as imagens são inconclusivas - duas hipóteses se apresentam. Se o policial acreditava, dadas as circunstâncias, que o agressor estava armado com uma lâmina, poder-se-ia dizer da ocorrência de uma descriminante putativa (vide art. 20, § 1º, CP). Se o policial sabia que o jovem não estava armado, restaria clara a ocorrência de um excesso punível.

Se o excesso ocorreu, teria ele sido doloso ou culposo? As imagens e o fato de ter sido a vítima encaminhada pelos próprios policiais ao atendimento médico parecem afastar a possibilidade do excesso doloso e, se tal excesso ocorreu, tratar-se-ia de afirmar a responsabilidade penal pelo crime de lesão corporal culposa (caso o Fabrício sobreviva aos ferimentos) ou homicídio culposo (conforme os disparos restem fatais).

E sendo o caso de excesso doloso? Nesta situação seria de se afirmar que os policiais, sabendo finda a agressão, foram além do necessário para a legítima defesa ou estrito cumprimento do dever legal e, intencionalmente, passaram de defensores à agressores, atuando, portanto, ilicitamente. Supondo que os disparos constituam-se em excesso doloso, seria de se argumentar, dada a situação de duas possíveis figuras típicas: lesão corporal dolosa ou homicídio doloso.

Ainda na hipótese de excesso doloso, é de se atentar para uma particularidade do fato. Os próprios policiais levaram Fabrício para o hospital. Este fato, considerando a tese homicida no excesso doloso, seria de fundamentar o reconhecimento de arrependimento eficaz (art. 15, CP) - quando o agente voluntariamente atua para afastar a concretização do resultado criminalmente reprovável - o que impede a responsabilidade penal pelo crime de homicídio tentado, respondendo os sujeitos ativos somente pelos fatos já praticados. Nesta situação hipotética de excesso doloso, portanto, independente do dolo de lesão corporal ou de homicídio, os agentes policiais responderiam por delito de lesão corporal grave, considerando a debilidade permanente da função reprodutiva e eventual perda de mobilidade de um dos braços (art. 129, § 1º, III, CP). Sendo a perda da função reprodutiva e/ou a mobilidade de um dos braços completa, tratar-se-ia de lesão corporal gravíssima (art. 129, § 2º, III, CP).

De qualquer modo, as imagens e as circunstâncias do fato, parecem, salvo a superveniência de novas provas noutro sentido, corroborar a hipótese de que a atuação do policial que disparou a arma de fogo deu-se nos limites da causa justificante do legítima defesa e/ou estrito cumprimento do dever legal, sem que qualquer excesso - culposo ou doloso - tenha sido verificado. 

PS: Novos fatos.

Segundo o Comandante da PM, o policial que disparou a arma de fogo foi aquele derrubado e agredido. Segundo o pronunciamento do oficial da Polícia Militar: "Nas imagens gravadas, é possível ver o policial que cai quando o jovem vai para o lado dele com um canivete. Foi aí que o PM fez dois disparos, um que atingiu a virilha e o outro a clavícula do rapaz. Os dois disparos foram de baixo para cima. Uma pessoa caída, que poderia ser agredida, para evitar uma injusta agressão, fez os disparos."  

Segue-se, ainda, uma síntese das versões do ocorrido:

Fonte: Folha de São Paulo

PS: Apresentando uma quadro estável e ausente risco à vida, Fabrício Proteus, no dia 28 de janeiro de 2014, prestou depoimento, confirmando a posse de todos os instrumentos encontrados pela Polícia. Destaca que, de fato, atacou o policial com um estilete, mas, somente após ter sido baleado pelo policial. 

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