quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

As consequências jurídicas da suposta inconstitucionalidade do tráfico de maconha


É muito provável que o representante do MPDFT, ao oferecer denúncia contra Marcus Vinícius Pereira Borges, não esperava uma sentença como a exarada pelo Juiz de Direito Substituto Frederico Ernesto Cardoso Maciel.

Para aqueles que não tiveram notícia do grande busílis a que se refere este post, segue uma síntese:

O réu foi denunciado como incurso nas iras do art. 33, caput, c.c. art. 40, III, todos da Lei n. 11.343/2006 em razão de conduta praticada no dia 30 de maio de 2013, quando tentou ingressar no complexo penitenciário PDF II, trazendo consigo 52 porções de maconha, totalizando 46,15 g, e, em razão desta conduta, restou preso em flagrante delito.

O sólido conjunto probatório reunido pela acusação não foi, entretanto, suficiente para garantir a condenação. O magistrado, mesmo reconhecendo a materialidade e a autoria do ação praticada pelo réu, decidiu pela absolvição sustentando que a Portaria 344/98-MS - que aprova o regulamento técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial - seria ilegal e inconstitucional. 

Superando tais esclarecimentos preliminares, passa-se à análise dos fundamentos da referida sentença.

Conforme asseverado pelo magistrado: "o art. 33, caput, da lei 11343/06 é classificado pela doutrina do Direito Penal como norma penal em branco o que, em brevíssima síntese, é aquela que depende de um complemento normativo, a fim de permitir de forma mais rápida a regulamentação de determinadas condutas".

O art. 33, caput, do referido diploma legal, possui a seguinte redação:

Art. 33.  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Mas o que seria a "droga", para efeitos de tipificação das condutas típicas da Lei n. 11.343/2006? O termo "droga" - objeto material - constitui-se em um elemento normativo do tipo que há de ser interpretado restritivamente observando disposições legais e regulamentares descritivas. 

Segundo a portaria da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde n. 344, de 12 de maio de 1988, os termos "droga" e "entorpecente" devem ser assim interpretados:

Art. 1º. Para efeitos deste Regulamento Técnico e para a sua adequada aplicação, são adotadas a seguintes definições:
[...]
Droga - Substância ou matéria-prima que tenha finalidade medicamentosa ou sanitária.
Entorpecente - Substância que pode determinar dependência física ou psíquica relacionada, como tal, nas listas aprovadas pela Convenção Única sobre Entorpecentes, reproduzidas nos anexos deste Regulamento Técnico.
 
Uma interpretação mais apressada, então, poderia afirmar que uma determinada substância capaz de determinar dependência física e psíquica que, entretanto, não tem finalidade medicamentosa ou sanitária, mas sim, recreativa, bem poderia ser considerada como entorpecente, mas não como droga.

Tal proposição restaria correta não fosse o disposto no art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006: "Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União". 

Sendo assim, a Lei de Tóxicos, posterior à portaria do Ministério da Saúde, determina que para efeitos de tráfico de drogas, tais hão de ser consideradas como qualquer produto ou substância suficiente para causar dependência física e psíquica. Em suma, droga é, nos termos da Lei, uma substância entorpecente, sendo irrelevante a sua finalidade medicamentosa ou sanitária.

Aqui encontramos um ponto oportuno para iniciar a análise dos fundamentos da referida sentença proferida pelo magistrado Frederico Ernesto Cardoso Maciel.

Nos termos da sentença: "Soa incoerente o fato de outras substâncias entorpecentes, como o álcool e o tabaco, serem não só permitidas e vendidas, gerando milhões de lucro para os empresários dos ramos, mas consumidas e adoradas pela população, o que demonstra também que a proibição de outras substâncias entorpecentes recreativas, como o THC, são fruto de uma cultura atrasada e de política equivocada e violam o princípio da igualdade, restringindo o direito de uma grande parte da população de utilizar outras substâncias".

O fato da maconha e de outras drogas cujo o princípio ativo se identifica com o THC serem usadas com fins recreativos é completamente irrelevante para a tipificação do crime de tráfico de drogas nos termos do art. 33 da Lei de Drogas. Em razão da definição constante no retromencionado art. 1º da Lei n. 11.343/2006, é dispensada qualquer especial finalidade da substância para a tipificação do delito.

Por outro lado, mui corretamente, o magistrado qualifica o tabaco e o álcool como substâncias entorpecentes, afinal, tais substâncias, da mesma forma que o THC (Tetraidrocanabinol) - princípio ativo da maconha - são, à evidência, capazes de produzir dependência física e psíquica no termos do art. 1º, parágrafo único, da Lei de Tóxicos.

Se o tabaco e o álcool são substâncias entorpecentes, nos termos do art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 11. 343 de 2006, por que sua comercialização não é reprimida? Subtraindo-se de considerações sociológicas e criminológicas sobre o etiquetamento e adequação social, e concentrando-se, unicamente nos aspectos jurídicos da questão, pode-se afirmar que o comércio de substâncias etílicas e do tabaco estão inserido no âmbito das condutas lícitas em decorrência dos dispositivos da portaria n. 344/98.

Sendo assim, resta absolutamente incorreta a seguinte proposição do magistrado: "A portaria 344/98, indubitavelmente um ato administrativo que restringe direitos, carece de qualquer motivação por parte do Estado e não justifica os motivos pelos quais incluem a restrição de uso e comércio de várias substâncias, em especial algumas contidas na lista F, como o THC, o que, de plano, demonstra a ilegalidade do ato administrativo".

A portaria 344/98, conjugada com os dispositivos da Lei n; 11.343 de 2006 não restringe as possibilidades de comércio de substâncias entorpecentes. Pelo contrário, as amplia. Como assim? Ora, se consideramos, somente, o disposto na Lei de Drogas, as substâncias etílicas e o tabaco deveriam ser consideradas como entorpecentes e, prima facie, proibidas. Tais são assim consideradas ilícitas por não estarem no rol taxativo de substâncias entorpecentes proibidas constantes na referida portaria.

A remissão das normas incriminadoras à um rol taxativo de substâncias proibidas (norma penal em branco), neste caso,  heterogênea) serve para ampliar, por omissão, as possibilidades de substâncias que se subtraem ao escopo da Lei de Drogas. Todo entorpecente que não está expressamente proibido, resta permitido. A portaria, isto sim, diminui as possibilidades de incriminação de comércio de entorpecentes.

Porém, se como quer o magistrado, tal portaria, face os princípios contidos no art. 37 da Constituição Federal, mostra-se como ilegal e inconstitucional, quais seriam as consequências derivadas de tão entendimento? Duas possíveis respostas se apresentam: (a) Com a Lei de Drogas deixando de ser uma norma em branco, a tipificação do crime de tráfico de drogas estaria alicerçado somente no termo entorpecente, enquanto substância capaz de produzir dependência; e (b) A Lei de Drogas continua a ser uma norma penal em branco, porém, com a ilegalidade e inconstitucionalidade da portaria n. 344/1998, restariam todas as normas incriminadoras completa e formalmente ineficazes.

O princípio da legalidade - especificamente no que se refere à cláusula nullum crimen, nulla poena, sine lege stricta - afasta, de pronto, a possibilidade de tipificação dos crimes contidos na Lei de Drogas com referência unicamente ao termo "droga". Isso, uma vez que o art. 1º da Lei n. 11.343/2006 determina, explicitamente que somente pode ser objetivo de reprovação penal o tráfico de substâncias entorpecentes assim especificadas em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União. Suprimir este complemento serviria, portanto, não para restringir o alcance dos tipos penais, mas para, inconstitucionalmente, ampliá-los. 

Segundo a fundamentação da decisão do magistrado, resta claro que sua opção é pela segunda hipótese. Da sentença pode-se inferir o entendimento de que a Lei de Drogas continuaria a ser uma norma penal incriminadora, entretanto, restaria o seu complemento necessário inexistente, em decorrência da suposta ilegalidade e inconstitucionalidade da portaria. Quais as consequências de tal posicionamento? A resposta é simples: A ineficácia formal de todos as normas penais incriminadoras da Lei n. 11.343/2006.

A ineficácia formal, neste caso, seria decorrente do fato de que o objeto material das normas incriminadoras da Lei de Drogas é juridicamente definido pela cumulação de duas qualidades essenciais. Droga ilícita, para efeitos legais é: (a) substância capaz de provocar dependência; e (b) especificadas ou relacionadas em lista do Poder Executivo da União.

Sendo a lista é ilegal e inconstitucional, como quer o magistrado, significa dizer que resta juridicamente impossível completar todos os elementos jurídicos exigidos para o reconhecimento do objeto material dos crimes relacionados ao tráfico de drogas. Consequência disso é a inviabilização da tipificação objetiva de qualquer conduta em relação à norma incriminadora de tráfico de drogas, da maconha ao haxixe, mas também do crack à cocaína, juridicamente não seria possível dizer de uma substância capaz de reunir os requisitos jurídicos para fundamentar a reprovação penal.

Em síntese e segundo o entendimento do magistrado: não somente a maconha, mas todas as substâncias entorpecentes, sem o socorro aos ditames da portaria n. 344/98, estariam agora completamente liberadas. 

Vide ainda: A suposta inconstitucionalidade do tráfico de maconha: No que está baseado o magistrado?

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