quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Crime de Terrorismo: Análise dos dois Projetos de Lei do Senado


 Após o lamentável falecimento de um cinegrafista durante a cobertura de manifestações que terminaram em confronto com a autoridade policial no Rio de Janeiro, o tratamento jurídico-penal para o terrorismo volta à pauta de discussão do Congresso Nacional, opondo dois projetos de lei que versam sobre a mesma matéria. 

Além da comoção social derivada da morte do cinegrafista, a tipificação da conduta de terrorismo se faz premente em decorrência de uma certa polêmica doutrinária sobre a recepção da Lei de Segurança Nacional (L. n. 7.170/1983) pela ordem constitucional inaugurada com a Carta Magna de 1988. Para saber mais, recomenda-se o seguinte artigo de IACZINSKI, F. L.

Mesmo, hipoteticamente, reconhecendo a recepção da Lei de Segurança Nacional, outros problemas, decorrentes de uma parca técnica legislativa em sua redação, fazem-se presentes. O legislador, no caso da referida lei, esqueceu de nomear a conduta do art. 20 da Lei n. 7.170/1983 como terrorismo, de modo que, a princípio, não é possível identificar a existência de uma conduta criminosa juridicamente nomeada como tal. Essa situação implica em uma lacuna jurídica, uma vez que a Constituição Federal e a Lei de crimes hediondos fazem menções à um crime de terrorismo que tecnicamente não existe enquanto uma conduta típica especificamente nomeada como tal.

Ademais, mesmo superando essa técnica objeção em relação à ausência de um delito com o nomem iuris de terrorismo, ainda assim, outros problemas podem ser apontados. Nas palavras de Heleno Claúdio FRAGOSO: "No art. 20, onde se punem diversas ações heterogêneas, inclusive o terrorismo, encontramos uma das disposições mais de feituosas da lei. A definição legal do terrorismo apresenta dificuldades técnicas consideráveis, porque não há clara noção doutrinária do que ele significa. A nova lei é extremamente imperfeita, porque segue a linha casuística de nossas leis de segurança, misturando terrorismo com crimes violentos contra o patrimônio, com finalidade subversiva, que não constituem terrorismo. Por outro lado, a lei reproduz o defeito máximo das leis que têm estado em vigor, pretendendo definir o crime com a referência genérica a 'atos de terrorismo'. Isso numa lei penal é inadmissível, sobretudo porque não se sabe com segurança o que são atos de terrorismo". (Nova Lei de Segurança Nacional. Revista de Direito Penal de Criminologia, Rio de Janeiro: Forense, n.35, p. 60-9, jan./jun, 1983). 

Assim, face as razões retromencionadas, faz-se imperativo a adequada descrição do conduta de terrorismo por um norma penal incriminadora, de modo a suprir tal inaceitável lacuna em nosso ordenamento, especialmente constrangedora em momentos em que o Brasil encontra-se prestes a sediar grandes eventos internacionais, como a Copa do Mundo e as Olimpiádas.

Nota-se que, atualmente, existem três Projetos de Lei do Senado que intentam resolver o problema da tipificação do crime de terrorismo. Um deles, constituir-se-ia em uma lei excepcional para tutelar penalmente os casos de terrorismo unicamente por ocasião da Copa do Mundo. Sobre esse projeto de lei, já foram tecidos comentários em texto anteriorDe um lado estão os defensores de uma norma penal incriminadora do terrorismo nos termos da redação encontrada no PLS 236/2012. Doutro lado, aqueles que sustentam uma melhor adequação da descrição da conduta a partir do disposto no PLS 499/2013. Vejamos cada uma das redações propostas.

No PLS 236/2012, anteprojeto de reforma do Código Penal proposto pelo Senador José Sarney, o crime de terrorismo seria assim tipificado:

Terrorismo
 Art. 239. Causar terror na população mediante as condutas descritas nos parágrafos deste artigo, quando:
I - tiverem por fim forçar autoridades públicas, nacionais ou estrangeiras, ou pessoas que ajam em nome elas, a fazer o que a lei não exige ou deixar de fazer o que a lei não proibe;
II - tiverem por fim obter recursos para a manutenção de organizações políticas ou grupos  armados, civis ou militares, que atuem contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, ou
III - forem motivadas por preconceito de raça, cor, etnia, religião, nacionalidade, sexo, identidade ou orientação sexual, ou por razões políticas, ideológicas, filosóficas ou religiosas.
§ 1º Sequestrar ou manter alguém em cárcere privado;
§ 2º Usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa;
§ 3º Incendiar, depredar, saquear, explodir ou invadir qualquer bem público ou privado;
§ 4º Interferir, sabotar ou danificar sistemas de informática e bancos de dados; ou
§ 5º Sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com grave ameaça ou violência à pessoas, do controle , total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meios de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalação públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia e instalações militares:
Pena: prisão, de oito a quinze anos, além das sanções correspondentes à ameaça, violência, dano, lesão corporal ou morte, tentadas ou consumadas.

Forma qualificada
§6º Se a conduta é praticada pela utilização de arma de destruição em massa ou outro meio capaz de produzir grandes danos:
Pena - prisão, de doze a vinte anos, além das penas correspondentes à ameaça, violência, dano, lesão corporal ou morte, tentadas ou consumadas.

Exclusão do crime
§ 7º Não constitui crime de terrorismo a conduta individual ou coletiva de pessoas motivadas por propósitos sociais ou reinvidicatórios, desde que os objetivos e os meios sejam compatíveis e adequadas à sua finalidade.

Por outro lado, o projeto PLS 499/2013, proposto pela Senador Romero Jucá, ofereceria, caso aprovado, a seguinte tipificação da conduta de terrorismo:

Terrorismo
Art. 2º Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa.
Pena - reclusão, de 15 (quinze) a 30 (trinta) anos.

Forma qualificada
§ 1º Se resulta morte:
Pena - reclusão, de 24 (vinte e quatro) a 30 (trinta) anos.

Causas de aumento de pena
§ 2º As penas previstas no caput e no § 1º deste artigo aumentam-se de um terço, se o crime é praticado:
I - com o emprego de explosivo, fogo, arma química, biológica ou radioativa, ou outro meio capaz de causar danos ou promover destruição em massa;
II - em meio de transporte coletivo ou sob proteção internacional;
III - por agente público, civil ou militar, ou pessoa que aja em nome do Estado;
IV - em locais com grande aglomeração de pessoas.
V - contra o Presidente e o Vice-Presidente da República, o Presidente da Câmara dos Deputados, o Presidente do Senado Federal ou o Presidente do Supremo Tribunal;
VI - contra Chefe de Estado ou Chefe de Governo estrangeiros, agente diplomático ou consular de Estado estrangeiro ou de representante de organização internacional da qual o Brasil faça parte.

§ 3º Se o agente for funcionário público, a condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para o seu exercício pelo dobro da pena aplicada.

Terrorismo contra coisa
Art. 4º Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante dano a bem ou serviço essencial.
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos.

§ 1º Considera-se bem ou serviço essencial, para efeito do caput deste artigo, barragem, central elétrica, linha de transmissão de energia, aeroporto, porto, rodoviária, ferroviária, estação de metrô, meio de transporte coletivo, ponte,plataforma fica na plataforma continental, central de energia, patrimônio material tombado, hospital, cada de saúde, instituições de ensino, estádio esportivo, sede do pode executivo, legislativo ou judiciário da União, Estado, Distrito Federal ou municipal, e instalação militar.

§ 2º Aplica-se ao crime previsto no caput deste artigo as causas de aumento pena de que tratam os incisos IV e VI do § 2º do art. 2º deste Lei.

§ 3º Se o agente for funcionário público, a condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para o seu exercício pelo dobro da pena aplicada.


Quais são os problemas e as virtudes das descrições típicas de terrorismo mencionadas?

Primeiramente, sobre a descrição típica proposta pelo  PLS 236/2012. A grande virtude da tipificação do crime de terrorismo nos termos propostos por tal projeto reside na disposição de especiais finalidades (elementos subjetivos do tipo) que seriam suficientes para apartar as condutas usuais da prática do terror de outras relacionadas com a cotidiana criminalidade.

Sob o risco de ser demasiado sintético, a diferença essencial entre o terrorismo e a criminalidade usual, especialmente aquela praticada por organizações criminosas violentas, reside nos fins de sua conduta. Dito doutra maneira, a diferença entre os condutas criminosas do terrorista e do bandido organizado não está nos meios, mas sim, nos fins que orientam a prática de atos de violência.

Enquanto o crime organizado pode bem infundir o terror na população local (como foi o caso dos atentados perpetrados pelo Primeiro Comando da Capital em São Paulo), este o faz com o intuito de garantir as condições necessárias para a continuidade e ampliação de seus empreendimentos criminosos. Ou seja, que não possuem outra finalidade senão a consolidação de seu poder e o incremento de seu lucro ilícito. Pode-se afirmar, então, que o crime organizado, mesmo utilizando meios semelhantes aos terroristas, difere-se destes pela finalidade última de suas ações. O crime organizado visa essencialmente o lucro ilícito, enquanto o terrorismo realiza seus atos violentos em perseguição à fins políticos ou ideológicos.

A ausência deste elemento subjetivo do tipo (especial finalidade), relacionando o terrorismo com o inconformismo político e ideológico, é a grande falha da descrição típica que consta no PLS 499/2013.

Entretanto, se nesse ponto o PLS 236/2012 é superior ao PLS 499/2013, noutro apresenta um grave problema. Trata-se da inserção de uma causa de exclusão da ilicitude nos termos de seu § 7º, que assim assevera: "Não constitui crime de terrorismo a conduta individual ou coletiva de pessoas motivadas por propósitos sociais ou reivindicatórios, desde que os objetivos e os meios sejam compatíveis e adequadas à sua finalidade". 

O reconhecimento de tal cláusula de exclusão da ilicitude, implicaria no afirmação jurídica de um "terrorismo do bem". Note-se, o disposto no § 7º não se presta a evitar a criminalização das manifestações sociais que estão garantidas constitucionalmente e, sendo realizadas pacificamente, estão já acobertadas pela causa justificante do exercício regular de direito. A redação do referido § 7º do art. 236 do PLS n. 299/2012 permitiria a validação jurídica da perigosa proposição de que é possível usar atos de violência (sequestro; cárcere privado; uso de explosivos, gases tôxicos, venenos e conteúdos biológicos; incêndio, depredação, saque e invasão de prédios públicos) como meios legítimos de reivindicação social. Resta perguntar quando tais meios seriam compatíveis e adequados com a reivindicação por propósitos sociais em um Estado Democrático de Direito. A meu ver, a legitimação de tais condutas seria absolutamente inconstitucional por frontal ofensa aos fundamentos essenciais do próprio Estado Democrático de Direito, legitimando a violência como um meio adequado para demonstrar seu inconformismo político. Ora, não importa a nobreza dos fins (propósitos sociais) quando considerada a torpeza dos meios.

De qualquer modo, a descrição da conduta de terrorismo nos termos do PLS 299/2012 é superior em técnica ao do PLS 499/2013, desde que se desconsiderada a excrescência de seu Art. 239, § 7º, que se constitui em, nada mais, nada menos, do que a criação do direito de terrorismo com pedigree social.

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