quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Mensalão (AP 470): Da tipicidade da quadrilha à atipicidade da associação criminosa [ATUALIZADO]


Foram retomados, nesta quarta-feira (22 de fevereiro de 2014), os trabalhos do julgamento da Ação Penal n. 470  e dos fatos à ele inerentes (vulgarmente chamados em seu conjunto como Mensalão). Na pauta da Excelsa Corte está a apreciação de onze embargos infringentes, notadamente aqueles apresentados por José Dirceu, José Genoino, José Roberto Salgado, Delúbio Soares e Kátia Rabelo, que, em comum, versam sobre questão relativa ao delito de formação de quadrilha ou bando.

Para compreender o busílis que está sendo discutido no STF, antes é de se destacar que o delito de formação de quadrilha e bando foi objeto de ampla alteração nos termos da L. n. 12.850 de 2 de agosto de 2013.   Compare a redação do crime previsto no art. 288 do Código Penal antes e depois do referido diploma normativo:

Antes de L. n. 12.850/2013:
Quadrilha ou  Bando
Art. 288. Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para fim de cometer crimes:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Parágrafo único. A pena aplica-se em dobro, se a quadrilha ou bando é armado.

Depois da L. n. 12.850/2013:
Associação Criminosa
Art. 288.  Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Parágrafo único.  A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente.  

Sinteticamente, as principais modificações são:
a) Deixa de existir a nomeação do crime como "quadrilha ou bando", sendo que agora, terminologicamente, designado como delito de "associação criminosa";
b) O número mínimo de associados é reduzido. Antes era necessário para a tipificação do delito um mínimo de 4 (quatro) pessoas. Nos termos da atual redação, esse número mínimo de participantes na associação criminosa é reduzido para 3 (três) pessoas;
c) É incluído na redação do art. 288 do Código Penal o imperativo de se reconhecer na associação o fim específico de cometer crimes. Isso implica que agora é exigido não só que a associação tenha como finalidade a prática de crimes, mas que tal objetivo seja a específica, ainda que não exclusiva, motivação para tal agremiação de pessoas. Para saber mais, vide o seguinte texto.
d) O rol de causas de aumento de pena é ampliado, prevendo, agora, a possibilidade de majoração da pena em metade quando da participação de crianças (menores de 12 anos) ou adolescentes (maiores de 12 e menores de 18 anos).

Considerando tais alterações, fica a pergunta: o advento da L. n. 12.850/2013. e através dela a nova redação do art. 288 do Código Penal, constitui-se em uma norma penal mais benéfica? A resposta para tal questão é de suma importância, considerando que, se benéfica, seus efeitos retroagirão, influindo então no julgamento de questões afeitas à AP 470.

Pode-se afirmar que, de forma geral, a nova redação do art. 288 do Código Penal implica em um tratamento jurídico mais severo do que a sua versão anterior. A diminuição do número mínimo de associados (de quatro para três pessoas) implica um substancial incremento do âmbito incriminador do delito de associação criminosa em relação ao de quadrilha ou bando. A associação de três pessoas para a prática de delitos, que não poderia sob nenhuma condição ser tipificada nos termos do art. 288 do Código Penal, agora é alcançada pela norma incriminadora de associação criminosa. Implica, portanto, o reconhecimento da irretroatividade do referido dispositivo, pelo menos, no que se refere ao minimum de participantes. Da mesma forma, a nova causa de aumento de pena constitui-se em ampliação das majorantes possíveis, e, portanto, também é irretroativa.

É de se atentar, porém, que uma norma penal pode ser, na maior parte dos casos, mais severa, entretanto noutros particulares poderá ser dada como benéfica. Aliás, socorrendo-se na redação do art. 2º, parágrafo único do Código Penal ("A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado"), pode-se bem observar que a determinação do caráter gravoso/benéfico da lei posterior deve ser determinado a partir de um juízo individualizado, considerando as particularidades do caso concreto e as peculiaridades do indivíduo acusado ou condenado. 

Em suma: o caráter mais severo ou mais benéfico de uma norma não pode ser determinado abstratamente, pelo contrário, deve sempre ser precisado desde análise individualizada de cada caso em particular.

No caso da condenados por formação de quadrilha na AP 470, é possível reconhecer a nova redação do art. 288 como potencialmente benéfica muito em razão da inclusão do termo "fim específico" na nova tipificação de associação criminosa. 

Como pontuado anteriormente, a inclusão do fim específico de cometer crimes na figura típica de formação de quadrilha implica que para a tipificação do delito é, agora, demandado que a agremiação tenha entre seus propósitos a principal, ainda que não exclusiva, finalidade de praticar crimes.

Como isso beneficia os condenados? Simples. Se anteriormente bastava a demonstração que os quadrilheiros, no momento em que se associaram, tinham a finalidade de praticar crimes, mesmo que tal intuito não fosse o principal, ainda assim, subsistiria a tipificação da crime de formação de quadrilha. Por outro lado, nos termos da descrição típica do crime de associação criminosa, se demonstrado que aquele grupo de políticos tinha como objetivo principal a condução negociações políticas e o angariamento de apoio no Congresso Nacional (atividades lícitas, apesar dos pesares) e que a compra de votos era um recurso criminoso extraordinário que o grupo lançava mão para alcançar os fins de sua agenda política, neste caso, estaria afastada a concretização dos elementos típicos necessários para a configuração do crime de associação criminosa pela ausência da especial finalidade de praticar crimes.

Neste sentido, inclusive, já se pronunciou a Min. Carmén Lúcia, que em seu voto considera que o crime não pode ser imputado aos condenados por ausência da especial finalidade de cometer crimes.

Em suma: a nova redação do crime previsto no art. 288 do Código Penal, no caso específico dos condenados que opõem embargos infringentes contestando a enquadramento de suas condutas no crime de formação de quadrilha, pode ser considerada uma norma mais benéfica e, sendo assim, retroativa, implicando, consequentemente, na atipicidade de suas condutas face a nova descrição que demanda uma finalidade especial de cometer crimes, dantes não prevista.

Aliás, com a substituição dos Ministros Cezar Peluzo e Ayres Britto por Luiz Barroso e Teori Zavascki, as chances de absolvição dos condenados pelo crime de formação de quadrilha aumentaram sensivelmente. É dado como certo que o voto do Ministro Barroso será favorável à defesa. Certa dúvida ainda paira sobre o posicionamento do Ministro Zavascki, mas a tendência é que também afaste a tipificação do crime de quadrilha ou bando, dando provimento aos embargos e, por consequência, absolvendo os condenados. deste delito em particular.

PS: Importante notar que as referidas alterações somente entraram em vigor 45 (quarenta e cinco) dias após a publicação da L. 12.850/2013.

Atualização 1: Voto do Min. Barroso. É de se destacar a incoerência lógico-jurídica do voto do Ministro, uma vez que sustenta, preliminarmente, a hipótese de que o crime estaria prescrito desde um adequado cálculo da pena (o que pressupõe reconhecer a condenação) para depois afirmar que a atipicidade da conduta (que pressupõe a absolvição). Para ler mais sobre o assunto, vide o seguinte texto

Atualização 2: Voto do Min. Celso Mello.

Atualização 3: A decisão da Excelsa Corte foi no sentido da absolvição dos réus (inclusive José Dirceu, Delúbio Soares e José Genoíno) em relação ao crime de formação de quadrilha. Votaram no sentido do provimento dos embargos infringentes e, portanto, pela absolvição, os seguintes ministros: Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Carmén Lúcia, Luiz Barroso, Teori Zavascki e Rosa Weber. Desde de tal decisão, os condenados por outros crimes, evidentemente, não terão suas penas incrementadas  e, em sua maioria, continuarão o cumprimento de pena em regime semiaberto.


Imagens: Folha de São Paulo

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