quinta-feira, 24 de abril de 2014

Matança de policiais no Brasil: Por quem os sinos não dobram


Sobre as Forças de Segurança Pública, não poucas críticas podem ser feitas. Denúncias de brutalidade e corrupção são frequentes; formação deficiente dos policiais para enfrentar os desafios da nova criminalidade; falta de equipamentos; ausência de investimentos na adoção de métodos científicos para solução de crimes; problemas relacionados com a integração de bancos de dados; entre outros. De pronto, já se aceita como verdadeira a proposição de que as instituições policiais estão longe da perfeição, mas o que se abordará neste texto é uma visão comumente ignorada - salvo por honrosas exceções, entre eles, Felipe Moura Brasil - sobre os servidores públicos que compõem nossas forças policiais. A ênfase desta postagem não está na violência policial, mas na violência contra os policiais.

1. Policiais como um grupo vulnerável.

Os conceitos de minorias e de grupos vulneráveis não estão pacificados na literatura sobre direitos humanos, entretanto, podemos eleger alguns referenciais teóricos para a problematização da questão.

Segundo o art. 27 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966): "Nos Estado em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não podem ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua". Neste sentido, MINORIA pode ser conceituada desde alguns elementos básicos: (a) grupo numericamente minoritário; (b) identidade do grupo baseada em elementos étnicos, religiosos e linguísticos; (c) solidariedade interna entre os membros do grupo; e (d) posição de não dominância e vulnerabilidade.

Desde tal conceito de minorias, no Brasil, poderiam ser classificados como tais, a título de exemplo: (a) os negros, considerados, numericamente minoritários, desde que separados daqueles que se declaram pardos; (b) os indígenas; (c) os ciganos ou romani; entre outros. 

Por outro lado, muitos outros grupos de pessoas especialmente vulneráveis não poderiam ser integrados neste conjunto. Exemplifica-se: (a) as mulheres, ainda que particularmente expostas à violência de gênero, não se enquadram no conceito, uma vez que não são numericamente minoritárias, pelo contrário, perfazem a maioria da população brasileira; (b) pessoas que devido sua orientação sexual - comunidade LGBTT - são vítimas de sistemática discriminação, porém, não se ajustam ao conceito de minoria porque a identidade do grupo é apoiada em outros elementos que não étnicos, religiosos ou linguísticos; (c) crianças e adolescentes, ainda que recorrentes vítimas de maus-tratos e violência, não possuem entre si um fator de identidade alicerçado em etnia, religião ou língua; e (d) a população de rua exposta a indiferença e brutalização, no mesmo sentido.

Para caracterizar aqueles conjuntos humanos de pessoas especialmente expostas à violência que não se enquadram no conceito de minorias, lançou-se mão de uma nova e mais adequada terminologia, a saber, a de GRUPO VULNERÁVEL. Segundo a cartilha SENASP/MJ: "grupo vulnerável é um conjunto de pessoas que por questões ligadas a gênero, idade, condição social, deficiência e orientação sexual, tornam-se mais suscetíveis à violação de seus direitos". O dicionário de direitos humanos da Escola de Superior do Ministério Público da União, conceitua grupos vulneráveis como aqueles "que sofrem tanto materialmente como social e psicologicamente os efeitos da exclusão, seja por motivos religiosos, de saúde, opção sexual, etnia, cor da pele, por incapacidade física ou mental, gênero, dentre outras". 

Nestes termos, aqueles conjuntos humanos excluídos do conceito de minorias (mulheres, comunidade LGBTT, crianças, adolescentes, idosos, população de rua) podem ser adequadamente inseridos no paradigma de grupos vulneráveis.

Superada esta fase de esclarecimento terminológico, pode-se, agora, atacar uma questão que possivelmente causará estranheza em muitos: Os policiais podem ser considerados como um grupo vulnerável? Considerando os elementos conceituais expostos acima, a resposta é SIM. Isso porque se constituem num conjunto humano identificado por uma particular condição social (ocupação profissional) e, em razão dela, estão especialmente expostos - material, social e psicologicamente - à violação de seus direitos.

Já se podem ouvir os gritos metafóricos de indignação de alguns.

Alguém poderá dizer que os policiais não merecem ser compreendidos como grupo vulnerável por serem essencialmente violentos. Tal objeção não se sustenta. É de se afirmar que em razão do monopólio estatal da violência - uma das marcas do Estado de Direito - é absolutamente indispensável considerar que as forças policiais devem lançar mão do uso da força necessária, desde que nos estritos limites do indispensável para o cumprimento de seu dever legal.

É certo que não são poucas as denúncias de abuso de autoridade e violência policial, mas não é possível, desde tais números, extrapolar tal constatação para concluir que todos ou a maioria dos policiais sejam brutos e/ou violentos. 

Destaca-se que tomar casos particulares, ainda que numerosos, para criminalizar todo um grupo social é, nada mais, nada menos, do que um abominável preconceito. Esta hedionda prática de reprovação coletiva pode bem ser verificada, por exemplo, na injustificável e criminosa discriminação do povo cigano, para citar um exemplo evidente. Sendo assim, podemos afirmar que todos os policiais que praticam crimes devem ser punidos, mas os pecados praticados por uma parcela minoritária do grupo não podem ser utilizados para a criminalização de todos os membros. Tal reprovação coletiva do grupo por pecados de seus membros isoladamente considerados já é, em si, uma forma de violência psicológica a que usualmente os policiais são submetidos.

Outros dirão que os policiais não merecem ser considerados como vitimas por serem essencialmente corruptos. Além das objeções já formuladas no parágrafo anterior (reprovação coletiva e preconceituosa do grupo por atos individuais de seus membros) soma-se o fato que não existe nenhuma evidência científica de que os policiais sejam mais ou menos corruptos do que a média da honesta população brasileira.

Dirão que o porte de armas por policiais é um argumento bastante para que os mesmos sejam afastados da ideia de vulnerabilidade. Outra falácia. Os membros das forças policiais estão legalmente autorizados a utilizar armas para o exercício de seu dever de zelar pela segurança pública e para se proteger dos muitos riscos inerentes à sua função. Evidentemente, o porte e o uso ilegal devem ser severamente punidos, responsabilizando - como já pontuado - o infrator e não o grupo. Ademais, a utilização de armas de fogo e brancas por sem-terras e indígenas, em não raras situações, nunca foi apontado como óbice para afastar a condição de vulnerabilidade que usualmente é reconhecida em tais grupos.

Portanto, refutadas as precedentes objeções, pode-se afirmar que os policiais podem ser compreendidos como grupo vulnerável, uma vez que sua ocupação profissional (condição social) os deixam expostos a toda sorte de riscos inerentes à atividade e especialmente vulneráveis a prática de atos de violência, como se demonstrará, com mais propriedade, quando analisadas as taxas de homicídios que lhe são próprias.

2. A indiferença social quanto a violência contra policiais

Não se pode considerar como outra coisa, senão absurdo, sustentar que uma determinada pessoa mereça sofrer um ato de violência por, simplesmente, pertencer a um determinado grupo social.

A recente pesquisa do IPEA sobre a violência contra a mulher causou gigantesca indignação quando expôs, em particular, o resultado estatístico de uma questão. "Mulheres  que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas". Segundo a pesquisa, retificada em razão de erro grosseiro, 26% (vinte e seis por cento) da população brasileira concordariam com tal proposição. Por certo, mesmo salientando os gigantescos problemas metodológicos da pesquisa, é destituída de sentido e racionalidade qualquer justificação de um ato de injusta violência contra a mulher. Da mesma forma, é irracional a defesa de qualquer ato de injusta violência contra qualquer pessoa em razão de qualquer qualidade pessoal (idade, etnia, cor da pele, religião, procedência nacional ou regional, p.e.) que lhe seja própria. Ninguém merece ser vitimado pelo que é.

O busílis reside no fato que a justificada indignação social que é, usualmente, reservada quando uma mulher é atacada em decorrência de seu gênero, quando um negro é atacado em razão da cor da sua pele, quando um indígena é atacado por sua etnia ou quando um morador de rua é atacado por sua condição social, é, por outro lado, absolutamente negada quando um policial é morto por ser policial.

Aliás, em não poucos casos, alguns defendem e justificam a violência contra policiais como uma forma de "legítima defesa social contra a violência simbólica do Estado". Evidente que quando alguns policiais fazem uso excessivo de força, a vítima de tal abuso está autorizada a utilizar violência nos limites da legítima defesa. O grande problema é que, mesmo quando as forças policiais atuam nos estritos limites da legalidade, a violência contra tais servidores públicos é completamente ignorada, para não dizer festejada. 

Para exemplificar tal proposição pode ser oferecido o caso de romantização da violência praticada pelos adeptos do black bloc. Em fevereiro de 2014, quando um cinegrafista foi morto por um artefato explosivo lançado por "manifestantes", alguns ainda tentaram defender o indefensável pontuando que o explosivo não tinha como alvo o cinegrafista, mas sim, os policiais. Como se os policiais merecessem, pelo fato de serem policiais, serem vitimados por atos de brutalidade e até, eventualmente, mortos. 

Quando manifestantes ligados ao MST tentaram invadir o STF em 12 de fevereiro de 2014, um confronto se sucedeu entre estes e policiais militares. O resultado: 33 feridos, sendo 30 policiais, sendo que destes, 8 precisaram ser encaminhados para o hospital. Nenhuma indignação social com o espancamento dos policiais, pelo contrário. O ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, em solidariedade, recebeu os manifestantes. 

Destaca-se, neste ponto, uma grande preocupação: a "romantização" e "justificação pelos fins" da violência é tão intensa que qualquer inconformismo, justificado ou não, vira pretexto para baderna generalizada, vandalismo, depredação, queima de ônibus e outros graves atos de violência.

3. O extermínio praticado contra nossos policiais.

Existe, pois, uma completa indiferença - nalguns casos até um sádico deleite - quando policiais são vitimados pela violência. Tal afirmação pode ser demonstrada pela análise dos números de homicídios praticados contra agentes da lei. Vejamos as taxas de homicídio da população geral e da população de policiais em números de homicídio por grupo de 100 mil habitantes por ano:

FONTE: Fórum brasileiro de segurança pública. Anuário brasileiro de segurança pública (2013)

Para uma compreensão adequada de tais números, algumas observações preliminares: (a) A OMS considera taxas de homicídio acima de 10 por grupo de 100 mil habitantes por ano como sintomas de violência epidêmica; e (b) o Brasil possui elevadíssimos índices de violência, especialmente considerando que as taxas de homicídios são 143% superiores à marca da já absurda violência epidêmica.

A análise das taxas de homicídios de policiais no Brasil não deixa dúvidas que, ultrapassado o limite da violência epidêmica, estamos alcançado num patamar no qual o número de homicídios de policiais bem poderia ser classificado como extermínio dos agentes da lei. A possibilidade de um policial brasileiro ser vítima por um crime de homicídio é 196,70% superior do seria com qualquer outra pessoa. Ou seja, o risco de ser morto, sendo policial, é quase três vezes superior do que sendo outro não integrante das forças policiais.

Alguém poderia afirmar que são ossos do ofício. Mas notem: os casos de homicídio de policiais são maiores quando eles estão fora de serviço, o que indica uma vitimização absurda para além dos riscos inerentes de sua ocupação, possivelmente relacionados a diversas hipóteses, entre elas se destacando casos de execução. Boa memória remete aos atentados e assassinatos de policiais praticados pelo PCC.

Vamos, agora, comparar a taxa de homicídios de policiais contra outras taxas que vitimizam grupos considerados como vulneráveis: mulheres e negros.

Considerando que, com razão, a violência de gênero é um fenômeno extremamente cruel e preocupante no Brasil, a sociedade e nossos representantes no Congresso tomaram diversas medidas para diminuir a vulnerabilidade feminina aos brutais atos de violência contra elas cometidos. São exemplos disso a Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e a movimentação pela criação do crime de feminicídio (homicídio qualificado por ódio ao gênero feminino). Qual a taxa de homicídios de mulheres no Brasil? Segundo dados do SIM/SVS/MS, a taxa de homicídios de mulheres por grupo de 100 mil pessoas no ano de 2010 é de 4,4. À titulo de comparação, a taxa de policiais é 1538% superior à taxa de homicídios contra mulheres.

A grande e cruenta taxa de homicídios que acomete a população negra brasileira é um completo absurdo e, com certeza, razão de profunda vergonha para um país que se dá como comprometido com a igualdade de todos perante a lei. 

Considerando negros e pardos, a taxa de homicídios (2010) desta população alcança vergonhosos 35,9 por grupo de 100 mil habitantes. No mesmo ano, a taxa de homicídios da população geral foi de 20,1 e da população branca 15,0, o que deixa manifesto um gravíssimo problema de vitimização por fatores raciais. 

Porém, sem querer diminuir a gravidade da vitimização da população negra e parda, se a cor da pele é um fator de vitimização, o uso da farda é ainda pior. Para uma ideia mais acurada, a taxa de homicídios de policiais é o dobro da população negra e parda. Mais precisamente, a chance de ser morto sendo policial é 100,83% superior à chance de ser morto sendo negro ou pardo.

Desde tais índices de vitimização dos policiais, é um absurdo não considerá-los como um grupo especialmente vulnerável. Ser policial, muito provavelmente, é o maior fator de risco quando consideradas as taxas de homicídio. Entretanto, ainda assim, nenhuma indignação social e nula simpatia dos segmentos que se dedicam a defesa dos direitos humanos.

Os dedicados servidores públicos que compõem as forças policiais brasileiras estão no limbo, no lugar-nenhum, entre a indiferença rancorosa da população e a mira dos criminosos.

4 comentários:

  1. Parabéns professor, outra excelente publicação.

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    1. Agradeço a leitura. É uma tema muito importante para ficar ignorado.

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  2. Professor parabéns pela iniciativa em publicar um texto realmente tão importante. De acordo com os dados, ficamos perplexos. As porcentagens nos mostram o quanto o homicídio à polícia é alto. Excelente publicação!!!

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  3. Professor, bom dia!

    Inicialmente meus parabéns pela qualidade do artigo e o comprometimento com a realidade e os fatos, e não com o pernicioso senso comum. É interessante observar, que existem várias críticas à violência e corrupção policial e um tratamento dado à questão como se a polícia fosse uma espécie à parte. Fato: não é. Da mesma forma que médicos, advogados, políticos, professores, agricultores, lixeiros ou qualquer outra profissão, os policiais são fruto da sociedade em que vivem.

    As organizações policiais não ensinam violência e corrupção. Quando se vê qualquer profissional que assim age, é apenas um reflexo daquilo que já traz em si, exposto pela oportunidade. Se a família (inicialmente) e a escola (em complementação) não conseguiram incutir valores essenciais à vida em sociedade ao indivíduo, tais como honestidade, respeito ao próximo, etc., nenhum curso de formação profissional o fará com uma pessoa que já tem sua personalidade formada.

    Da mesma forma, critica-se a violência policial brasileira comparando-a com a polícia americana ou a dinamarquesa. Outro erro crasso. Estes estudos não comparam a legislação e o comportamento destes povos com o brasileiro. Uma pequena lição herdada da química: para a comparação de elementos, consideram-se as "condições normais de temperatura e pressão", ou seja, todos em condições análogas. Não é assim nas comparações entre polícias. Apenas mostrando um exemplo simples: a legislação brasileira coloca como agravante para delitos, em regra, sua prática por agentes públicos. A legislação alienígena coloca como agravante, em regra, a prática de delitos contra agentes públicos. Isto por si só, é um incentivo ao enfrentamento, pois o cidadão não se sente na obrigação de acatar as definições estatais e ainda se sente seguro de que qualquer consequência advinda daí, será vista como excesso policial.

    Por que o americano é ferido ou morto em números muito menores que o brasileiro em confrontos com a polícia? O americano sabe que as normas respaldam a atuação policial, e por isso não se arvora em enfrentar gratuitamente a polícia, ao passo que no Brasil, a regra é enfrentar e ainda se vangloriar quando atinge o policial.

    Bom, poderíamos escrever quinhentas páginas sobre o assunto, sem esgotá-lo. A inversão de valores é realmente preocupante, e nos faz questionar, como diria Renato Russo: que país é este?

    Mais uma vez parabéns pelo texto!

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