quarta-feira, 16 de abril de 2014

O galo, a galinha e o princípio da insignificância [ATUALIZADO]


Causou certa polêmica nas redes sociais a notícia de que um caso referente ao furto de um galo e uma galinha, avaliados em R$ 40,00 (quarenta reais) - uma prova que o custo de vida brasileiro é absurdo - chegou ao STF. O furor foi tamanho que muitos se exsurgiram contra o prosseguimento do processo criminal contra o ladrão de galináceas entendendo tratar-se do que seria um profunda injustiça. Outros mais exaltados (por todos Luiz Flávio GOMES) classificaram a continuidade do processo como um sintoma da "degeneração  moral e ética, geradora de embotamento mental assim como a perda da sensibilidade típica dos humanos".

Antes de nos juntarmos a malta dos que consideram o caso um sintoma da falência da Justiça Criminal, sejamos prudentes. Vejamos os fatos.

1. O cerne da questão.

Afanásio Maximiniano Guimarães, na madrugada de 10 de maio de 2013, teria subtraído duas aves (avaliadas em R$ 40,00) pertencentes à R. G. M.. Já na manhã, percebendo ter sido afanado em um frango e uma galinha, a vítima foi avisada pelo irmão - mui amigo - de Afanâsio que este teria chegado de madrugada na posse das galináceas. Uma vez descoberto o furto e autoria, destaca-se, que Afanâsio teria restituído as aves à vítima.

Informado por provas suficientes do ocorrido, o Ministério Público ofereceu denúncia em razão do furto. A defesa, inconformada, lançou mão de sucessivos habeas corpus argumentando que face o princípio da insignificância a conduta de Afanásio seria materialmente atípica, o que justificaria o trancamento da ação penal com base no art. art. 397, III, do CPP.

Tais writs foram denegados sucessivamente pelo TJMG, pelo STJ e pelo STF. O argumento que informou a denegação de todos os habeas corpus pode ser resumido ao entendimento que o trancamento da ação penal através do writ é uma medida excepcional que somente pode ser aplicada quando indiscutível a ausência de tipicidade da conduta.  

Nota-se, então, que o processo penal em razão do furto da galinha e do galo continua a correr tendo Afanásio como réu. As decisões dos Tribunais, portanto, não foram no sentido de manter uma condenação, mas simplesmente pelo entendimento que a conduta merece ser melhor avaliada antes de, se for o caso, afirmar o princípio da insignificância. Noutras palavras, o que os tribunais decidiram foi no sentido que as condições de procedibilidade da ação estão presentes. Nada mais, nada menos.

Então Afanâsio não foi condenado? Não, ele não foi condenado, aliás, nem mesmo se encontra preso. O que ocupa o centro da polêmica é se ele deve ou não ser processado criminalmente.

2. O princípio da insignificância

Segundo Luiz Flávio GOMES, o caso em pauta trata-se de evidente situação que justifica a aplicação do princípio da insignificância ou da bagatela. Nas palavras do próprio:

Essa subtração constitui um fato atípico (atipicidade material, conforme o ministro Celso de Mello – HC 84.412-SP). Logo, não há que se falar em crime. Sem crime não pode haver processo. Algo que nunca deveria ter sido iniciado acaba de chegar ao STF (e o ministro Fux não deu liminar para encerrar o caso de uma vez por todas). Vamos acompanhar atentamente pela TV Justiça a sessão do STF que vai debater e julgar a acusação do furto de uma galinha e um galo, cometido por um jovem de 25 anos.

Se por um lado é pacífico o reconhecimento do princípio da insignificância (ou da bagatela) como causa supralegal de exclusão da tipicidade (material), é de se perguntar se aplicável ao caso em tela.

Para apoiar sua posição, GOMES lança mão do entendimento do Ministro Celso de Mello sobre a matéria. Vejamos os requisitos para o reconhecimento da insignificância nas palavras do Ministro da Excelsa Corte:

"O princípio da insignificância – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público em matéria penal" (STF - HC 92.463-8 RS).


Pelas linhas do Min. Celso de Mello fica patente que a aplicação do princípio da insignificância depende do reconhecimento de outros fatores para além do pequenez do prejuízo causado à vítima. Trata-se, pois, de uma análise complexa na qual o valor da coisa furtada constitui-se em somente um dos quatro critérios que devem ser compreendidos cumulativamente.

Apresentados os critérios para a determinação da insignificância, vejamos se tais se ajustam ao caso do afanador de penosas.

a) Seria R$ 40,00 reais um valor insignificante?

Ninguém discutiria que alguns centavos ou ainda poucos reais constituir-se-iam em um irrelevante soma de numerário. Entretanto, conforme maior o valor, a insignificância vai ficando cada vez mais incerta.

Quando analisa-se a inexpressividade da lesão jurídica qual o critério que deve ser utilizado? O que pode ser insignificante para uma parcela da população brasileira, para outros, menos privilegiados, pode bem constituir-se em algo de valor considerável. Vejamos a ressalva de Guilherme de Souza NUCCI neste sentido:

"Não se deve exagerar, no entanto, na aplicação do princípio da bagatela, pois o que é irrelevante para uns pode ser extremamente importante para outros. Ex: subtrair uma galinha de quem só possui um galinheiro com quatro é um valor significativo, que necessitará ser reposto. Por outro lado, subtrair um pintinho de uma granja imensa, com milhares de aves, pode ser insignificante, sem qualquer afetação ao patrimônio" (Código penal comentado, 2009, p. 719).

Desde o entendimento de NUCCI, fica patente que a inexpressividade da lesão deve ser verificada levando em consideração as particulares condições patrimoniais da vítima. Sendo assim, a subtração de meros R$ 40,00 (quarenta reais) possuem uma intensidade lesiva diferenciada quando a vítima é Luiz Flávio GOMES ou quando é uma pessoa de poucas posses, como parece ser a vítima de Afanásio. 

Isso quer dizer que o valor insignificante somente há de ser reconhecido quando a subtração de tal não implica em um revés patrimonial para a vítima. Considerando um Brasil no qual a pobreza não é uma exceção, R$ 40,00 (quarenta reais) podem bem ser consideráveis para uma família que vive de salário mínimo.

Pode-se afirmar, portanto, que o fato do galo e galinha redundarem em um prejuízo de R$ 40,00 (quarenta reais) não torna evidente a atipicidade da conduta e, portanto, não justificaria o trancamento da ação penal como quer a defesa de Afanásio.

b) Reduzidíssimo grau de reprovabilidade da conduta.

A defesa sustenta que os antecedentes criminais de Afanásio não deveriam ser utilizados para afastar a incidência do princípio da insignificância, pois o que estaria a se analisar seria simplesmente a conduta. Não se pode concordar com tal entendimento.

O próprio art. 59 do Código Penal indica que na determinação do grau de reprovabilidade deve ser levado em conta uma série de fatores, entre eles, destaca-se, os antecedentes criminais. Ou seja, a reprovabilidade da conduta é determinada desde um juízo pessoal da culpabilidade do agente criminoso.

A prática reiterada de delitos, irrelevantes quando considerados isoladamente, podem muito bem justificar o afastamento do princípio da insignificância uma vez que a reiteração criminosa incrementa o juízo de reprovabilidade do autor da conduta típica. 

Neste sentido, se demonstrado no curso do processo que Afanásio - além de possuir antecedentes criminais - é praticante contumaz de furtos de pequeníssimo valor, não se pode coadunar com a afirmação de um reduzidíssimo grau de reprovabilidade da conduta daquele que torna o crime um modo de vida.

Portanto, mais do que justificado está a continuidade do processo, pois é nele que se apresentarão provas que permitirão reconhecer ou não o reduzidíssimo grau de reprovabilidade da conduta de Afanásio. Foi neste sentido as decisões do TJMG, do STJ e do STF.

Destaca-se novamente: Os tribunais não estão a dizer que o ladrão de galinhas merece ser mandado para cadeia. O que decidiram foi que, dadas as particularidades do caso, Afanásio merece ser julgado, podendo, ao fim do processo, ser condenado ou absolvido.

 3. Furto privilegiado.

Se por um lado não é possível reconhecer evidente e incontestável a atipicidade material da conduta de Afanásio em razão do princípio da bagatela - daí justificado a continuidade do processo criminal - parece, por outro lado, que existem elementos suficientes para o reconhecimento do furto privilegiado nos termos do art. 155, § 2º do Código Penal:

"Art. 155. [...]
§ 2º. Se o criminoso é primário, e de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa".

Os requisitos para o reconhecimento da privilegiadora são, portanto, dois: a) criminoso primário; e b) pequeno valor da coisa furtada.

a) Primariedade

Pode parecer contraditório ao leigo a afirmação de que, apesar de Afanásio possuir antecedentes criminais, o afanador de galináceas seria primário. Isso se dá pelo fato de que, no ordenamento jurídico brasileiro, primário é aquele que não reincidente. Considerando os art. 63 e 64 do Código Penal, reincidente é aquele que foi condenado, no Brasil ou no estrangeiro por sentença condenatória transitada em julgado. Retornará, entretanto, à condição de primariedade desde que entre a entre a data do cumprimento de pena e a extinção da punibilidade tenha transcorrido um lapso de tempo superior à 5 (cinco) anos.

De qualquer forma, sendo Afanásio primário, um dos critérios para a privilegiadora está verificado.

b) Pequeno valor da coisa furtada.

Entre a insignificância e a pequena monta existe uma certa área de indeterminação, o que justifica, ainda mais, a continuidade do processo a fim de esclarecer a questão: R$ 40,00 (quarenta reais), no caso em pauta, deve ser considerado como um valor pequeno ou insignificante?

Ainda que seja incerta a insignificância da lesão patrimonial produzida pelo furto do galo e da galinha, alternativamente, pode-se afirmar que, não sendo o caso de bagatela, é inescapável o entendimento de que um prejuízo de R$ 40,00 (quarenta reais) deve ser considerado como de pequena monta.

A doutrina majoritária, inclusive, sustenta que a subtração de valores inferiores a 1 (um) salário mínimo é considerada como furto de coisa de pequeno valor.

Não fazendo jus à reconhecimento atipicidade material do furto em decorrência do princípio da insignificância - o que, repita-se, deve ser verificado no curso do processo criminal - é bem possível que Afanásio faça-se merecedor da privilegiadora, por ser primário - apesar dos maus antecedentes - e por serem as penosas de pequeno valor.

4. Arrependimento posterior.

É destacado pela defesa que Afanásio devolveu as aves para a vítima. Ainda que não estejam claras as circunstâncias nas quais a devolução ocorreu, vamos supor que se deu por ato voluntário do afanador. Nesta situação, merecido seria o benefício do arrependimento posterior, nos termos do art. 16 do Código Penal. Vejamos:

Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.

Note que a devolução da coisa furtada, nos termos da lei, não implica na desconstituição do crime, no afastamento da tipicidade ou em óbice ao processo. Reconhecida que a devolução ocorreu por ato voluntário, o Direito Penal indica o merecimento de uma causa de diminuição de pena de um a dois terços.

5. Implicações da condenação por furto privilegiado.

Não sendo o caso de possível suspensão condicional do processo e afastada a tese da insignificância no curso do processo, é bastante provável que Afanásio seja condenado por furto privilegiado e que seja reconhecido o benefício do arrependimento eficaz, como restou demonstrado anteriormente. 

Quais seriam as prováveis consequências de tal condenação? Seriam as seguintes:

a) A pena de reclusão seria convertida em detenção, diminuída de um a dois terços ou, ainda, seria somente aplicável uma multa;

b) Não sendo o caso de aplicação isolada da multa, a pena ainda seria diminuída, novamente, de um a dois terços em razão do arrependimento posterior.

Isso significa dizer que, mesmo condenado, é altamente improvável que Afanásio vá para a prisão. Os cenários mais prováveis indicam que o juiz lhe aplicará somente a pena de multa ou substituirá a pequena pena privativa de liberdade por uma restritiva de direitos (prestação de serviços à comunidade, p.e.).

CONCLUSÃO

As decisões dos Tribunais (TJMG, STJ e STF) pela continuidade da ação penal, no caso de Afanásio, estão plenamente justificadas pelo fato de que a insignificância não resta patente pela mera análise do valor do prejuízo causado à vitima, sendo mister reconhecer presentes todas as condições de procedibilidade da ação penal que tem o afanador de penosas como réu.

A continuidade da ação penal que tem Afanásio como réu, ao contrário do que muitos supõem, não implica que ele será condenado, pois é possível, no decorrer do processo, ser reconhecida a bagatela. A manutenção da ação penal, portanto, somente significa dizer que a tese defensiva da insignificância do furto é uma hipótese possível, ainda que não seja tão evidente que justifique a absolvição sumária.

E mesmo considerando o cenário no qual Afanásio terminaria condenado, é altamente improvável que receba uma pena privativa de liberdade.  

Sendo assim, os ladrões de galinha podem restar tranquilos e os profetas do apocalipse jurídico podem guardar as suas trombetas do fim do mundo.

ATUALIZAÇÃO [09-05-2014] 

Após ver seu caso chegar ao Supremo Tribunal Federal, um homem acusado de roubar um galo e uma galinha na cidade de Rochedo de Minas (MG) firmou acordo com a primeira instância para suspensão do processo. Ele terá de ressarcir o dono dos animais em R$ 40 e pagar multa de R$ 754, entre outras condições. As informações são do jornal O Tempo.

O juiz da cidade de São João Nepomuceno, Júlio César Silveira de Castro — o mesmo que aceitou a denúncia — determinou ainda que o suposto ladrão não poderá, durante dois anos, deixar a cidade por mais de sete dias sem permissão da Justiça, deverá comparecer mensalmente ao fórum local para justificar suas atividades e não poderá frequentar bares e boates após as 22h. A proposta partiu do Ministério Público.

Segundo o periódico, a expectativa da defensoria é que o STF ou o Superior Tribunal de Justiça defiram o pedido de anulação do processo para que o réu fique livre das obrigações impostas pelo juiz.

Ao analisar o caso, o ministro do STF Luiz Fux rejeitou pedido de liminar para arquivar a ação penal e decidiu que o caso deve ser resolvido no mérito do Habeas Corpus, após manifestação do Ministério Público.

“A causa de pedir da medida liminar se confunde com o mérito da impetração, porquanto ambos referem-se à aplicabilidade, ou não, do princípio da insignificância no caso sub examine. Destarte, é recomendável que seja, desde logo, colhida a manifestação do Ministério Público Federal”, afirmou.

FONTE DA ATUALIZAÇÃO: O consultor jurídico.
 

4 comentários:

  1. Francisco, eu gostaria de falar com você. Enviei uma mensagem via Facebook, mas deve ter caído na pasta "Outros". Pode checar e retornar, por gentileza?

    Obrigado,

    Paulo Gomes

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  2. Sua analise jurídica (excelente, destaque-se) não é uma evidência de que muita mudança precisa ser feita na ordem jurídica? Ou é correto que a Suprema Corte continue a se ocupar de casos como roubo de galinha?

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  3. Caro PH,

    Não acho que seja o caso de muita mudança, mas sim de poucas, porém grandes, mudanças. Especialmente, com bem aponta, a competência da Excelsa Corte, que está abarrotada com questiúnculas e picuinhas que em noutro país mais sério nunca alcançariam a Corte Constitucional, como é o caso do roubo de galinha, ainda que tenha decidido corretamente, reconhecendo que existe no caso as condições de procedibilidade da ação.

    Com certeza não acho que o STF deveria ter para a si a competência para julgamentos criminais por prerrogativa de foro e extradição. Outras competências bem poderiam lhe ser subtraídas, sem prejuízo qualquer.

    De qualquer forma, você está correto. O STF não deveria ter que tratar disso, pena que da forma que suas competências estão determinadas e da estrutura do Judiciário, ele não tenha muita escolha.

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  4. Ok. Mensagem lida e compreendida. Estamos aí.

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