quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

FACEPALM JURÍDICO: As besteiras que os jornais nos contam


Pode-se afirmar que qualquer ramo do conhecimento somente pode arrogar para si a qualidade de Ciência se reúne determinadas características, sendo que dentre elas, destaca-se, especialmente, a sistematização de uma linguagem perita que permite a construção das bases conceituais e a expressão destes conceitos com precisão técnica. Aliás, é desde a linguagem perita que resta possível diferenciar entre o discurso leigo e do discurso científico.

De pronto, para evitar confusão, quer-se dizer como leigo aquele que não possui o conhecimento perito necessário para compreender, com precisão, algum discurso científico. Sendo assim, um doutor em direito constitucional pode, muito provavelmente, constituir-se em leigo quando confrontado com um texto perito da Ciência Médica. Um físico teórico, provavelmente, terá dificuldades de entender as particularidades de um texto científico de sociologia. Da mesma forma, outros poderão enfrentar problemas para compreender a exata dimensão de alguns termos jurídicos. Não é equivocado dizer que todos somos, em larga medida, leigos, ainda que sejamos peritos em determinada fração do conhecimento.

É nessa distância entre o discurso leigo e o científico que se consubstancia um sério problema quando consideramos os meios de comunicação de massa. Por definição tais meios procuram atingir o maior número possível de pessoas e, portanto, utilizam da linguagem corrente própria da comunicação entre leigos.

É inimaginável que no decorrer do noticiário ou de um artigo jornalístico - reduzido a breves minutos ou a poucas linhas - seja possível explicar determinados fatos com a devida precisão demandada pela Ciência. Neste ponto, particularmente sensível, o comunicador, invariavelmente, toma para si a missão de traduzir os conceitos técnicos numa linguagem acessível para a população leiga. O comunicador, portanto, deve simplificar sem restar simplista. Eis o problema. É necessário um bocado de habilidade e sensibilidade para levar a cabo, com exatidão, esta tarefa. No mais dos casos, algo, invariavelmente perde-se na tradução.

Considerando o grande interesse nacional depositado sobre questões afeitas à segurança pública e ao Direito, a Ciência Jurídica é, em muito, afetada por este problema. É neste contexto que o colunista do jornal Folha de São Paulo, Jânio de Freitas, recentemente nos brindou com o mais perfeito exemplo de como jornalista leigo não deve se comportar ao emitir juízos e opiniões sobre áreas do conhecimento que não domina ou que domina precariamente. Refiro-me, ao texto "O presente de Aécio" no qual o colunista, além de acusar o senador da República de crime de calúnia, injúria e difamação, sustenta a possibilidade jurídica de qualquer eleitor - desde que comprovadamente eleitor de Dilma Rousseff - processá-lo civil e criminalmente por tais delitos. Reproduzo trecho do texto abaixo:

Nas próprias palavras do ainda pretendente à Presidência da República: "Na verdade, eu não perdi a eleição para um partido político, eu perdi a eleição para uma organização criminosa que se instalou no seio de algumas empresas brasileiras patrocinada por esse grupo político que aí está". 

De fato, Aécio não perdeu para um partido político. Perdeu para os eleitores, petistas, peemedebistas e nada disso, que lhe negaram o voto e o deram a Dilma. Qualquer deles agora habilitado, desde que capaz de alguma prova de sua adesão a Dilma, a mover uma ação criminal contra Aécio Neves por difamação, calúnia e injúria, e cobrar-lhe uma indenização por danos morais. 

Considerando as linhas escritas pelo jornalista, fica claro que, ao oferecer ao leitor sua opinião, não tomou um cuidado elementar que se espera de um zeloso profissional que tem como missão informar o público. Quero dizer, não checou se sua opinião leiga sobre um assunto jurídico é adequada segundo o conhecimento perito do Direito. Digo que não consultou alguém, pois não é possível que um profissional devidamente capacitado com o título de bacharel em Direito incorra em erros tão crassos em matéria de responsabilidade civil e penal.

Nem mesmo trataremos do valor verdade das afirmações do Aécio Neves, que parecem ser validadas pelas investigações em curso na Operação Lava Jato, nos limitando a apontar os erros em matéria de Direito Penal cometidos pelo colunista.

Sem mais delongas, quais são os erros presentes no texto de Jânio de Freitas?

1. Os parlamentares são absolutamente invioláveis por suas palavras, votos e opiniões.

A Constituição Federal é absolutamente categórica em afirmar a inviolabilidade [imunidade material] dos parlamentares por suas palavras, votos e opiniões. Tal prerrogativa é considerada inerente ao mandato político e indispensável para a livre atuação do parlamentar em seu dever de representar seus eleitores, sendo garantida aos senadores, deputados (federais, estaduais e distritais), bem como, de forma mitigada aos vereadores (nos termos do art. 29, VIII, CF/88).

No caso de deputados e senadores, a inviolabilidade encontra-se no disposto do art. 53 da Carta Magna: 

Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.

A inviolabilidade de que trata referido dispositivo constitucional, obsta de forma inapelável, qualquer possibilidade jurídica de processar senador ou deputado por sua opiniões, sejam elas quais forem, desde que vinculadas ao exercício no mandato parlamentar. Neste sentido, destacam-se as lições de José Afonso da SILVA:

"A inviolabilidade sempre foi a exclusão do cometimento de crime de opinião por parte de Deputados e Senadores; mas, agora, com a redação da EC-35/2001 ao caput do art. 53, se estabelece que eles são invioláveis civil e criminalmente por quaisquer de suas opiniões palavras e votos. A sua inviolabilidade, que, às vezes, também é chamada de imunidade material, exclui o crime nos casos admitidos; o fato deixa de constitui crime, porque a norma constitucional afasta, na hipótese, a incidência da norma penal" (Curso de Direito Constitucional Positivo, 2005, p. 534-5)

Por certo, cumpre destacar que existe uma certa divergência na doutrina sobre a natureza do instituto jurídico da inviolabilidade parlamentar: “Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967), Nélson Hungria (Comentários ao Código Penal), e José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo) entendem-na como causa excludente do crime, Basileu Garcia (Instituições de Direito Penal), como causa que se opõe à formação do crime; Damásio de Jesus (Questões Criminais) causa funcional de exclusão ou isenção de pena; Aníbal Bruno (Direito Penal) causa pessoal e funcional de exclusão da pena; Magalhães Noronha (Direito Penal) causa de irresponsabilidade; José Frederico Marques (Tratado de Direito Penal), causa de incapacidade penal por razões políticas” (MORAES, Alexandre, Direito Constitucional, p. 414). Entretanto, mesmo salientando esta divergência sobre a natureza jurídica da inviolabilidade parlamentar, é de se destacar que é absolutamente pacífico na doutrina e na jurisprudência que o senador ou deputado não pode, em nenhuma hipótese, ser processado, quer civil, quer penalmente, por suas palavras, votos e opiniões.

Ressalva-se, ainda, que o STF tem firmado o entendimento que, para a afirmação da imunidade, as palavras e opiniões proferidas pelo parlamentar devem estar vinculadas, ainda que remotamente, ao exercício de seu mandato. Por certo, um alerta contra a corrupção em uma empresa pública e envolvendo outros parlamentares enquadra-se nesta hipótese.

Sendo assim, é juridicamente equivocada, eticamente reprovável, além profissionalmente irresponsável, aquela afirmação em jornal de grande circulação que qualquer pessoa estaria legitimada à propositura de ação penal no caso em pauta.

2. A conduta descrita pelo colunista não é típica do crime de calúnia, difamação ou injúria.

Mesmo que o Senador Aécio Neves não fosse, penal e civilmente, inviolável por suas palavras, votos e opiniões, não é juridicamente possível reconhecer a prática dos crimes de calúnia, injúria e difamação como quer o colunista desinformado. Explicaremos em detalhes as razões de não ser possível dizer de tais crimes no caso em pauta.

Cumpre destacar, preliminar e sinteticamente, a diferença entre calúnia, injúria e difamação. A calúnia é descrita no art 138,CP, como aquela conduta de imputar a alguém, falsamente, um fato definido como crime; a difamação (art. 139, CP) é ação de imputar-lhe fato ofensivo à sua reputação; a injúria, por outro lado, é a atuação de ofender a dignidade ou decoro de alguém (art. 140, CP).

2.1. Por que não se trata do crime de calúnia?

O delito de calúnia pressupõe que a falsa imputação de um fato determinado e definido como crime. Não basta, neste sentido, simplesmente dizer que uma pessoa praticou algum delito, é necessário, ademais, que se especifique a fato criminoso. Quer dizer, é "indispensável que o agente narre um fato, ou seja, uma situação específica, contendo autor, situação e objeto" (Guilherme de Souza NUCCI, Código Penal Comentado, 2009, p. 661). Isso implica que a mera declaração de que alguém cometeu um delito, sem especificar qual ação teria sido concretamente praticada, não é suficiente para tipificação do crime em pauta. Assim, as palavras do senador Aécio Neves ("uma organização criminosa que se instalou no seio de algumas empresas brasileiras patrocinada por esse grupo político que aí está") nada mais é do que um perfeito exemplo de indeterminação, tanto daqueles a que são imputados aos fatos - impossível precisar com exatidão a quem o senador se refere - tanto quanto do crime em si - pois não esclarece qual seria a conduta efetivamente praticada pelos supostos criminosos.

2.2. Por que não se trata do crime de difamação?

Da mesma forma que no delito de calúnia, o crime de difamação pressupõe a descrição relativamente pormenorizada, dos fatos ofensivos que são irrogados contra alguém. O difamação deve, portanto, fazer uma referência desabonadora que contenha elementos descritivos suficientes para identificar quais pessoas estariam envolvidas, em que ocasião teria ocorrido e quais fatos teriam sido praticados. Como exposto anteriormente, a mera situação de um fato genérico, sem nenhum outra circunstância que permita a sua especificação, não é suficiente para caracterizar o delito de difamação.

2.3. Por que não se trata do crime de injúria?

No crime de injúria não é necessário que o agente impute a outrem um fato determinado e especialmente desonroso ou criminoso. Basta que ofenda a dignidade (sentimento pessoal de honra) ou o decoro (respeito pessoal que merece o indivíduo), seja por palavras, gestos, escritos ou qualquer outro meio hábil para transmitir a mensagem ofensiva. Porém, é indispensável que a vítima seja pessoa determinada, "embora não seja necessária a sua identificação nominal, sendo suficiente que seja possível a sua identificação com certa facilidade. Quando a ofensa é dirigida a determinada coletividade de razoável extensão, equipara-se a pessoa indeterminada, como se fora, por exemplo, proferir injúrias contra 'os comunistas' (...)" (BITENCOURT, Tratado de Direito Penal, v.2, 2012). No caso do senador Aécio Neves, sua frase atinge uma coletividade indeterminada de pessoas, sendo impossível determinar com precisão quem ou quantas pessoas são alcançadas por ela. Assim, decorre impossível a tipificação do crime de injúria em razão de inexistir sujeito passivo determinado.

CONCLUSÃO

O colunista Jânio de Freitas resta completamente equivocado quando afirma que os eleitores de Dilma Rousseff poderiam processar, civil ou penalmente, o Senado Aécio Neves por suposto crime de calúnia, injúria e difamação. Como demonstrado, o senador faz jus a imunidade parlamentar o que frustraria, inapelavelmente, qualquer possibilidade jurídica de responsabilidade civil ou penal por palavras, votos e opiniões. E mesmo que não fizesse por merecer tal garantia constitucional ao exercício de seu mandato, ainda assim, as condutas praticadas por Aécio Neves não podem ser tipificadas como delito, nem como calúnia, nem como difamação, tampouco como injúria.

Mesmo se não fosse um caso de imunidade parlamentar, mesmo que algum crime tivesse sido praticado por Aécio Neves, ainda assim, restaria completamente duvidoso que o eleitor tivesse legitimidade ativa para a propositura de uma ação com o intuito de receber indenização qualquer. 

Neste sentido, recomenda-se vigorosamente ao referido colunista que seja mais cuidadoso ao emitir afirmação sobre áreas do conhecimento que não domina, sob a pecha de ser taxado de irresponsável ou leviano no exercício da importantíssima tarefa de informar a população.

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