segunda-feira, 5 de maio de 2014

Projeto de Jean Wyllys: Primeiro passo para a liberação de TODAS as drogas



Em um recente texto do deputado Jean Wyllys foi apresentado o projeto de Lei n.7.270/2014, que pretende, dentre outras propostas, a legalização da maconha e a anistia de traficantes. Destacam-se as seguintes palavras do deputado: "A legalização tem sido o aspecto mais comentado do projeto, tanto por aqueles que são a favor quanto por aqueles que se opõem, mas a proposta vai além. Entre a lei e sua justificativa, são 60 páginas [na verdade são 57 páginas] que recomendo a quem quiser criticá-lo". 

As críticas ao texto do deputado já foram feitas em postagem anterior, agora o que se pretende é análise do referido projeto de lei propriamente dito.

Devidamente lidas todas as 57 páginas do Projeto de Lei, seguem abaixo as análises das propostas contidas no Projeto de Lei n. 7.270/2014.

1. O produto.

A influência do modelo uruguaio de regulamentação da maconha sobre o projeto do deputado federal Jean Wyllys é evidente. Da mesma forma que no Uruguai, o PL n. 7.270/2014, propõe a legalização da Cannabis, autorizando a produção, o plantio e o comércio do produto e seus derivados em todo território nacional (art. 1º, do Projeto).

Segundo o art. 1º, §1º do Projeto de Lei, a Cannabis e os produtos de Cannabis passariam a ser considerados "drogas  lícitas", deixando de integrar a lista de substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial da Agência de Vigilância Sanitária, o que implicaria no abolitio criminis (art. 2º, Código Penal) dos crimes de tráfico de drogas relacionados à Cannabis (maconha).

Nota-se que restaria vedada a manipulação genética da Cannabis, bem como a utilização e a comercialização de maconha transgênica (art. 12, I, do Projeto). Seria também proibido todo o processo de prensagem, aumento ou produção artificial de Cannabis. Nestes termos, pode-se afirmar que, basicamente, o Projeto de Lei implica que maconha legal seria somente a orgânica, salvo, no caso de produtos destinados ao tratamento médico.

Problemas

A proibição de variantes transgênicas - usualmente com elevadíssima concentração de THC (tetrahidrocanabinol) - fomentaria o mercado negro de tais substâncias e derivados, uma vez que são, justamente, estas espécies de maconha aquelas cada vez mais procuradas pelos usuários, segundo dados retirados do World Drug Report de 2013. Em suma: legalizar alguns tipos de maconha, mas deixar ilegal outros - justamente os mais procurados por usuários - teria pouquíssimo impacto na redução do tráfico de drogas, mesmo considerando, somente o mercado de maconha.

2. Os produtores de Cannabis no Projeto de Lei

O plantio, cultivo e colheita estariam autorizado somente a duas categorias de produtores: (a) produtores domésticos; e (b) clubes de autocultivadores.

O produtores domésticos - aqueles que produzem para uso pessoal ou compartilhado - estariam autorizados a possuir até 12 plantas de Cannabis (6 maduras e 6 imaturas) e produzir, mensalmente, 40g por indivíduo. Nos termos do projeto de lei, tais produtores domésticos seriam isentos de registro, inspeção e fiscalização (art. 7º do Projeto).

Os clubes de autocultivadores, nos termos do art. 8º do Projeto,  seriam formados por até 45 sócios, que poderiam plantar um número de plantas proporcional ao número de sócios, ou mais precisamente, 12 por indivíduo (6 maduras e  6 imaturas), produzindo uma quantidade máxima de 21,6 kg anuais de maconha (40g mensais por sócio).

O plantio, cultivo e colheita de Cannabis medicinal é previsto no art. 10 do Projeto de Lei 7.270/2014. Neste ponto, seria possível o cultivo da maconha medicinal por outros produtores para além das hipóteses doméstica e de autocultivadores. Interessante destacar que o art. 10, §4º permitiria que o Estado assumisse o controle e a regulamentação de plantio, cultivo, colheita, produção, aquisição, armazenamento, comercialização e distribuição de maconha medicinal. Nestes termos, o que se observa seria a previsão legal para a estatização da Cannabis terapêutica.

Problemas

O projeto de Jean Wyllys é baseado na autocultivação da maconha: i.e., a maconha é, fundamentalmente, produzida pelo próprio usuário, seja domesticamente, seja em clubes de autocultivadores.  A permissão do plantio de maconha, restrita somente aos produtores domésticos e clubes de autocultivadores, provavelmente, restringiria a oferta da Cannabis no mercado o que implicaria no aumento o preço do produto legalizado e tributado, fomentando o mercado negro da substância. Ao contrário do modelo uruguaio não reconhece a possibilidade de autorização de outros produtores, salvo nos casos de maconha medicinal.

No que se refere aos produtores domésticos, não fica claro quem são aquelas pessoas que podem ser computadas como "indivíduos" para o cálculo do limite mensal de produção da Cannabis. O número de indivíduos seria determinado desde o número total de residentes? Seriam considerados somente os maiores de 18 anos? Seriam computados somente os usuários, excluídos os "caretas"? A lei é omissa neste ponto.

Outro problema residiria nas questões relacionadas aos produtores domésticos. Eles estariam, por lei, isentos de registro, inspeção ou de qualquer fiscalização. Restaria, portanto, completamente impossível verificar se o produtor doméstico está atuando dentro dos limites da lei. Considerando a isenção de registro e fiscalização, é impensável que alguém prefira a produção desde grupos de autocultivadores - altamente fiscalizada - em detrimento da produção doméstica.

A possibilidade de controle estatal da produção e comércio de maconha medicinal permitira a criação de uma nova estatal? Seria o caso de designá-la como BRASCONHA?

3. O usuário no Projeto de Lei.

A Cannabis estaria disponível ao usuário desde duas possibilidades. Primeiramente, através do autocultivo, seja na hipótese de produção doméstica, seja no caso de produção por meio de grupos de autocultivadores. Ainda seria admissível a compra de maconha em "unidades de venda de cannabis no varejo" (art. 9º, § 4º, do Projeto).

Desde o art. 16 do Projeto de lei, modificando o art. 3º-A da Lei n. 9.294/1996, autorizaria a venda de Cannabis no varejo, limitada a 40 (quarenta) gramas mensais, por indivíduos - uma notória influência da legislação uruguaia - restando proibida a venda para menores, a distribuição de qualquer tipo de amostra ou brinde e outras restrições similares aos produtos de tabaco. O art. 61 do projeto, ainda, determina a proibição de qualquer tipo de registro ou coleta de dados de consumidores que incluam qualquer tipo de identificação individual. 

O art. 31 do projeto, modificando o art. 20 da L. 11.343/2006, ainda determinaria a criação de especiais obrigações do poder público em relação ao usuário, sendo as principais: (a) realização de campanhas para diminuir o preconceito social que, porventura, recaiam sobre o usuário, e  (b) criação de locais públicos destinados ao consumo assistido de substâncias entorpecentes sob a supervisão de equipes de saúde.

Problemas: 

O deputado Jean Wyllys já se manifestou no sentido que o afastamento dos menores de "bocas" de tráfico de drogas seria um dos objetivos de seu projeto de lei, porém, a proibição do acesso de menores ao comércio legal de maconha, fomentaria a demanda por um mercado ilegal voltado, justamente, para este grupo de consumidores. Ademais, desde a legalização da maconha, provavelmente, o acesso de menores a produtos derivados da Cannabis seria facilitado, a exemplo do que acontece com bebidas alcoólicas e tabaco. Em suma, o tráfico de drogas ainda atuaria neste nicho de consumidores (menores de 18 anos), com uma agravante, a legalização, muito provavelmente, diminuiria a repressão ao tráfico de maconha, facilitando, ainda mais, o acesso.

Outra questão parte do limite de 40g mensal por usuário. A vedação de qualquer registro de consumidores tornaria virtualmente impossível o controle deste consumo mensal. Aliás, permitiria o surgimento de cambistas da maconha, que comprando legalmente a substância - 40g de cada vez - poderia fomentar um comércio negro retroalimentado pelas unidades de venda no varejo. Na prática, portanto, o limite mensal não existe, pois o próprio projeto de lei inviabiliza qualquer forma de controle sobre os consumidores.

Outro ponto problemático é a criação de locais públicos de consumo assistido. A experiência holandesa, neste sentido, não se mostrou auspiciosa, em muito pela consequente deterioração do entorno. A Cracolância paulistana é um bom exemplo da degradação urbanística decorrente da criação de uma "área livre" para usuários. 

4. As alterações na L. n. 11.343/2006 desde o Projeto de Lei.

O Projeto de Lei n. 7.270/2014 propõe uma série de modificações na L. n. 11.343/2006, que além da descriminalização do tráfico de cannabis, implicaria numa parcial legalização de todas as drogas.

No art. 38 do projeto, propõem-se a completa descriminalização do uso ou consumo pessoal de qualquer substância entorpecente, seja ela lícita, sela ilícita, modificando o art. 28 da L. 11.343/2006. Tal modificação ainda tornaria lícito o cultivo e produção doméstica de qualquer substância entorpecente, da maconha ao crack. 

Estabeleceria ainda que, salvo prova em contrário de que o agente se dedica à mercancia, presume-se a destinação da droga ilícita para uso pessoal quando a quantidade for suficiente para o consumo médio individual por dez dias, ou quando o cultivo não excede 12 plantas. Desde tais casos, estaria vedado qualquer privação de liberdade ou indiciamento.

O oferecimento de qualquer substância entorpecente (lícita ou ilícita) sem o intuito de lucro deixaria de ser crime. Conforme as palavras do deputado federal na justificativa do projeto: "Em qualquer caso, estabelece-se a finalidade de lucro como condição necessária para a configuração dos tipos penais incluídos no art. 33 da lei 11.343/2006, com sua nova redação".  A única hipótese criminosa de entrega gratuita de drogas seria o caso de oferta de substância entorpecente à menores de 18 anos, caso que justificaria, nos termos do projeto, uma pena de 2 à 4 anos, e multa de 100 a 300 dias-multa.

A possibilidade de prisão em flagrante seria muito limitada pelo o art. 47 do projeto que, modificando o art. 50 da L. 11.343/2006, determinaria que: "o ingresso em domicílio, sem o consentimento do morador, para a realização de prisão em flagrante, só será admitido quando tiver por objetivo a preservação de direitos de incapazes ou cessação de atividade delituosa perceptível desde a vida pública; caso contrário, o agente necessitará de mandado judicial para o ingresso".

Criaria ainda o crime de tráfico privilegiado, nos casos em que a pessoa clara situação de vulnerabilidade social ou em razão de premente situação pessoal ou socioeconômica, se dedica ao tráfico de drogas ilícitas. Neste caso, a pena seria de 6 meses a 3 anos.

Problemas

Apesar de propagandeado com uma legalização do uso e comércio da maconha, o projeto de lei do deputado Jean Wyllys é muito mais ambicioso. As propostas, uma vez aprovadas, implicariam na descriminalização da produção e uso de qualquer substância entorpecente, independente da natureza lícita ou ilícita, desde que para consumo pessoal. Ou seja, deixariam de ser crimes as produções domésticas para uso pessoal, não só da maconha, mas também de qualquer derivado da coca, inclusive, o crack.

Ainda, descriminalizaria a oferta de qualquer substância entorpecente, desde que feita sem o propósito de lucro. Nestes termos, o oferecimento a título gratuito ou a preço de custo de qualquer droga deixaria de ser crime. Ou seja, legalizaria o "tráfico filantrópico de drogas", salvo no caso de oferta a menores de 18 (dezoito) anos. Nesta hipótese, teríamos situação de uma forma privilegiada.

A presunção de uso pessoal, não sendo evidente o intuito de lucro, quando da posse de quantidades inferiores ao que seria de se esperar suficiente para o consumo médio individual por dez dias, impossibilitaria, por outro lado, a repressão criminal do tráfico de drogas ilegais. Pelas seguintes razões: (a) qualquer traficante razoavelmente inteligente, não teria consigo mais do que a quantidade suficiente para 10 dias de consumo, inviabilizando o flagrante delito; (b) Mesmo que dinheiro troque de mão, a descriminalização da oferta sem intuito de lucro - gratuitamente ou a preço de custo - impossibilitaria o flagrante delito ou a persecução penal, pois seria possível, em quase todos os casos, argumentar que o valor cobrado pela substância entorpecente, corresponderia ao preço de custo, consideradas a produção e a distribuição.

O projeto ainda afirma que a quantidade referente ao consumo médio individual por dez dias seria definido pelo Ministério da Saúde, baseado em critérios científicos. Considerando que o Ministério da Saúde afirma, categoricamente, que não existem níveis seguros para o consumo de tabaco, como poderia determinar um consumo diário adequado para qualquer outro entorpecente? Ainda, já imaginou a fila para ser cobaia destes estudos?

Não bastassem as limitações da prisão em flagrante delito decorrentes da presunção de consumo pessoal, o texto do projeto de lei do deputado ainda limita o flagrante quando o tráfico de drogas é exercido intramuros. Noutras palavras, a prisão em flagrante estaria virtualmente impossibilitada em casos de tráfico "discreto" de drogas ilícitas.

Em suma: A aprovação de tal projeto, como se apresenta, implicaria na descriminalização do tráfico de qualquer substância entorpecente (da maconha à cocaína, do crack à merla) desde que afastado o intuito de lucro. Uma implicação indireta desta descriminalização seria uma virtual inviabilização da repressão criminal do tráfico com intuito de lucro, uma vez considerada a presunção de uso estabelecida no projeto e a restrição às hipóteses de flagrante delito.

5. Abolitio criminis e anistia aos traficantes no Projeto de Lei.

Um dos pontos polêmicos do projeto de lei reside na concessão de anistia  aos que cometerem crimes de tráfico de drogas quando a substância tenha sido a Cannabis ou produtos dela derivados (art. 21 do projeto de lei).

No caso de aprovação do Projeto na íntegra, tal anistia constituir-se-ia num absurdo jurídico, uma vez que o art. 1º do mesmo projeto, descriminaliza o tráfico de maconha e legaliza, completamente seu uso e comércio, retirando a Cannabis do rol de substâncias consideradas drogas ilícitas. Neste sentido, verifica-se abolitio criminis (art. 2º do Código Penal), sendo que todos os efeitos penais desaparecem (inclusive antecedentes e reincidência) de imediato, independentemente de anistia. Sendo assim, ocorrida a descriminalização, desnecessária a anistia para condutas de tráfico de drogas que tem como objeto maconha ou seus derivados. Sendo assim, o art. 20, §1º, que estabelece ressalvas à possibilidade de anistia - vedando, p.e., em casos de crimes violentos - resta completamente sem efeito, uma vez que o abolitio criminis fará desaparecer qualquer condenação, independente de qualquer condição estabelecida em tal dispositivo.

Mais polêmico ainda é a anistia de todo e qualquer traficante proposta no art. 21, §3º do Projeto de Lei n. 7.270/2014. Em seus termos, seriam ainda anistiados, todos aqueles que praticaram crimes de tráfico de drogas ilícitas, qualquer que seja a substância, desde que: (i) até o dia da promulgação da presente lei, ainda não tiverem sido indiciados em processo criminal por tais crimes; (ii) por própria iniciativa apresentarem perante o órgão que o Poder Executivo estabelecer para a solicitação do registro e habilitação como unidade de venda de Cannabis no varejo; e (iii) abandonarem definitivamente, a partir de tal solicitação, qualquer atividade relacionada à produção e/ou comercialização de drogas ilícitas, sob pena de revogação do benefício de anistia concedido.

Tal dispositivo é problemático em razão de algumas considerações: (a) não existem ressalvas ou impedimentos à concessão de anistia à criminosos violentos; (b) não é demonstrável o caráter definitivo do abandono do tráfico no momento da concessão da anistia, sendo, por outro lado que não seria possível a revogação da anistia concedida no caso do traficante retornar à produção ou comercialização de drogas ilícitas, pois uma vez extinta a punibilidade, não é possível que seja restabelecida.

Conclusão

O PL n. 7.270/2014, vendido como a legalização da maconha, de fato, pretende legalizar o consumo e a produção para uso pessoal de TODAS substâncias entorpecentes, lícitas ou ilícitas. Da mesma forma, descriminalizaria a oferta sem intuito de lucro - a título gratuito ou à preço de custo - de qualquer substância entorpecente para maiores de 18 dezoito. A instituição da presunção de consumo desde quantidade portada e as limitações ao flagrante delito, tornariam muito difícil e, nalguns casos inviabilizariam, a ação policial contra os traficantes, mesmo em situações de reprovável mercancia.

O projeto ainda apresenta problemas de técnica legislativa, uma vez que propõe uma anistia para casos seriam alcançados por abolitio criminis e revogação da anistia que não possibilitaria o afastamento da extinção da punibilidade.

Desta maneira, ainda que se reconheça imprescindível a reforma deste modelo de repressão baseado na guerra às drogas, a completa legalização de todas as substâncias - que é objetivo manifesto do deputado Jean Wyllys - é um equívoco de proporcionais calamitosas, pontuado inclusive por vários especialistas (aqui e aqui). 

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