segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Compartilhamento de postagens ofensivas ou inverídicas em redes sociais pode constituir-se em crime?




Nunca antes na história recente deste país observou-se um pleito eleitoral tão marcado pela polarização entre diversas candidaturas. Tampouco, observaram-se discussões tão acaloradas nas redes sociais como as verificadas por ocasião deste pleito eleitoral de 2014.

A paixão da militância deste e daquele candidato emergiu em constantes embates nas redes sociais, embates estes, muitas vezes, tão acalorados que superaram os limites da civilidade, descambando para a mera troca de ofensas.

Por certo, na maior parte dos casos e de forma geral, as postagens, apesar de duvidoso potencial de informação e evidente deselegância, não extrapolaram os limites que autorizam a considerá-las como ilícito penal. Entretanto, nalguns casos, a linha que separa um comentário de mau gosto do delito, foi superada.

Podemos citar como exemplos o conteúdo de várias postagens que vinculam candidatos com condutas criminosas, sem qualquer fiapo probatório e com nítidas intenções caluniosas, difamantes ou injuriosas. Noutros casos, o fervor político conduziu muitos usuários das redes sociais a postarem comentários com conotações flagrantemente racistas.

Para o estudioso do Direito Penal resta, desde tais fatos, a seguinte pergunta: Se é certo que uma postagem em redes sociais pode ser suficiente para consubstanciar a tipicidade de crimes contra a honra ou descritos na L. n. 7.716/1989 (crimes virtuais impróprios), em que medida, aquele que compartilha (divulgando ou propagando a postagem) pode ser responsabilizado penalmente?

Uma decisão paradigmática do TJSP reconheceu que o compartilhamento de postagens ofensivas em redes sociais, bem como comentários realizados por usuários em postagens de terceiros, quando desacompanhadas de razoáveis precauções na verificação da veracidade dos fatos compartilhados, poderá fundamentar a responsabilidade civil por danos morais:


EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - RÉS QUE DIVULGARAM TEXTO E FIZERAM COMENTÁRIOS NA REDE SOCIAL "FACEBOOK" SEM SE CERTIFICAREM DA VERACIDADE DOS FATOS - ATUAÇÃO DAS REQUERIDAS QUE EVIDENTEMENTE DENEGRIU A IMAGEM DO AUTOR, CAUSANDO-LHE DANOS MORAIS QUE PASSÍVEIS DE INDENIZAÇÃO - LIBERDADE DE EXPRESSÃO DAS REQUERIDAS (ART. 5º, IX, CF) QUE DEVE OBSERVAR O DIREITO DO AUTOR DE INDENIZAÇÃO QUANDO VIOLADA A SUA À HONRA E IMAGEM, DIREITO ESTE TAMBÉM CONSTITUCIONALMENTE DISPOSTO (ART. 5º, V, X, CF) - VALOR ARBITRADO A TÍTULO DE DANOS MORAIS QUE DEVE SER REDUZIDO PARA FUGIR DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DA PARTE PREJUDICADA, PORÉM, MANTENDO O SEU CARÁTER EDUCACIONAL, A FIM DE COIBIR NOVAS CONDUTAS ILÍCITAS - SENTENÇA PARCIALMENTE MODIFICADA, PARA MINORAR O QUANTUM INDENIZATÓRIO. (FONTE).


Reconhecida como certa a possibilidade de responsabilidade civil pelo compartilhamento de informações inverídicas em redes sociais, resta a pergunta sobre a possibilidade de eventual responsabilidade penal.

Dá-se como incontroverso, já de início, que não pode ser colocada em dúvida a prática dalguns crimes no ambiente virtual. Os crimes contra a honra, para citar o exemplo mais evidente, constituem-se em crimes virtuais impróprios, ou seja, são delitos que podem ser perpetrados, tanto através de dispositivos computadorizados, quanto através doutros meios. Em suma: são aqueles que podem ser praticados tanto no mundo virtual quanto fora dos limites da Rede Mundial de Computadores.

A questão essencial da postagem é outra e mais específica: Seria possível afirmar a responsabilidade penal de alguém pelo compartilhamento de postagens em redes sociais?

1. Responsabilidade penal nos crimes contra a Honra.

No caso da calúnia (art. 138, CP) salienta-se a expressa previsão legal para a responsabilidade penal do divulgador ou propagador de conteúdo calunioso. Conforme disposto no art. 138, § 1º: "Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga".

Destaca-se que do compartilhamento de postagens caluniosas somente decorrerá a responsabilidade penal, se e somente se demonstrado o especial conhecimento sobre a falsidade da informação pelo compartilhador. Sendo assim, aquele que compartilha, mas acredita que a informação é verdadeira, a despeito de não sê-la, não poderá ser considerado como sujeito ativo do crime de calúnia por divulgação. Por outro lado, cumpre ressaltar que, apesar de afastada a responsabilidade penal, eventualmente subsistirá a responsabilidade civil, quando o compartilhador não observou alguns deveres elementares de cautela para a comprovação da veracidade/falsidade da postagem.

Assim, no que tange a responsabilidade penal, não basta que a informação compartilhada seja falsa; ademais, é imprescindível que o compartilhador conheça da falsidade da imputação. É importante salientar que nos casos de calúnia, sendo a informação objetivamente verdadeira, a defesa poderá arguir em seu favor a exceção da verdade, salvo nas hipóteses do art. 138, §3º:

§ 3º - Admite-se a prova da verdade, salvo:
I - se, constituindo o fato imputado crime de ação privada, o ofendido não foi condenado por sentença irrecorrível;
II - se o fato é imputado a qualquer das pessoas indicadas no nº I do art. 141;
III - se do crime imputado, embora de ação pública, o ofendido foi absolvido por sentença irrecorrível.


Por outro lado, na hipótese dos crimes de difamação e injúria, não existe a expressa previsão legal para aquele que propaga ou divulga, por qualquer meio, o conteúdo difamante ou injurioso. Face esta ressalva, alguns autores sustentam que o eventual compartilhamento de conteúdos desta natureza não permitiria a responsabilidade penal, restando ao ofendido, tão somente, exigir reparações cíveis (Neste sentido: aqui). Ressalto, entretanto, a minha discordância deste posicionamento.

A cláusula constante no art. 138, §1º do Código Penal ("na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga") trata-se, com correção, de uma limitação à responsabilidade penal decorrente de divulgação de conteúdo calunioso. O referido dispositivo deixa patente que a conduta que divulga ou propaga a calúnia somente se constituirá em delito, se e somente se, o divulgador, no momento que compartilha a informação caluniosa, sabia da falsidade da informação. Por outro lado, tal cláusula não faria qualquer sentido nos delitos de difamação (art. 139, CP) e injúria (art. 140, CP), vez que, a falsidade das informações difamantes ou injuriosas não se constitui em elementar do tipo dos referidos delitos. Neste sentido, as lições de Nelson HUNGRIA: 

"na calúnia, o fato imputado é definido como crime e a imputação deve apresentar-se objetiva e subjetivamente falsa; enquanto na difamação o fato imputado incorre apenas na reprovação moral, e pouco importa que a imputação seja falsa ou verdadeira" (Comentários ao Código penal; t. V; v. VI; p. 84-85)

Isso quer dizer que, uma vez que a constituição do crime de injúria independe da veracidade ou falsidade da ofensa, da mesma forma que a difamação (salvo nas hipóteses de exceção da verdade, nos termos do art. 139, parágrafo único, CP), é irrelevante, para efeitos penais, que aquele que divulga ou propaga comentários difamantes ou injuriosos conheça da falsidade ou veracidade do conteúdo que compartilha. Basta que o compartilhamento seja realizado com o dolo específico de ofender alguém determinado através da divulgação da postagem compartilhada. Tal sustentação é apoiada pela inteligência do art. 142, parágrafo único, que ao alertar que nas hipóteses de perdão judicial previstas, dá como excluídos de tal benefício aqueles que deram publicidade a injúria ou a difamação e, portanto, reconhece a possibilidade de responsabilidade criminal decorrente de compartilhamento de conteúdo injurioso ou difamatório.

Esse é o meu entendimento, a despeito de respeitáveis posicionamentos noutro sentido.

Destaca-se, que o compartilhamento de informações caluniosas, difamantes e injuriosas realizadas com o único propósito de narrar ou criticar calúnia, difamação ou injúria praticada por outrem, não se constitui, por sua vez, em delito. Isso decorre do fato de que os crimes contra honra demandam dolo específico. Neste sentido:

"É possível que uma pessoa fale a outra de um fato desairoso atribuído a terceiro; embora, assim, esteja agindo com animus narrandi, ou seja, vontade de contar algo que ouviu, buscando, por exemplo, confirmação. Embora atitude antiética, não se pode dizer tenha havido difamação. O preenchimento do tipo aparentemente houve (o dolo existiu), mas a específica vontade de macular a honra alheia ( o que tradicionalmente chama-se 'dolo específico')". (NUCCI, Guilherme de Souza, Código penal comentado, 2009, p. 665).

"(...) exige-se, majoritariamente (doutrina e jurisprudência), o elemento subjetivo do tipo específico, que é a especial intenção de ofender, magoar ou macular a honra alheia" (NUCCI, Guilherme de Souza, Código penal comentado, 2009, p. 667).

Da mesma forma que o animus narrandi e criticandi, o animus jocandi - enquanto desejo manifesto de realizar uma brincadeira, ainda que de mau gosto - afasta o reconhecimento do dolo específico que é essencial para a tipificação dos crimes contra a honra. Outras hipóteses que excluem a tipicidade de crimes contra a honra estão previstas nos termos do art. 142, CP.

Art. 142 - Não constituem injúria ou difamação punível:
I - a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador;
II - a opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar;
III - o conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever do ofício.
Parágrafo único - Nos casos dos ns. I e III, responde pela injúria ou pela difamação quem lhe dá publicidade.

Especificamente no caso de injúria, destaca-se um apontamento. No caso de troca de ofensas proferidas no calor da discussão, a doutrina e a jurisprudência majoritárias são pela atipicidade da conduta. Sendo assim, a discussão apaixonada entre duas pessoas que, em determinado ponto, descamba para ofensas de baixo calão, apesar de reprovável moralmente, não constitui-se em fato relevante para o Direito Penal, por entender-se, no caso, ausente o elemento subjetivo específico que é a especial vontade de ofender. Neste mesmo caso, destaca-se, por fim, o instituto do Perdão Judicial nas hipóteses do ofendido, de forma reprovável, ter provocado diretamente a injúria e a situação na qual verifica-se a retorsão imediata (art. 140, §1º, II).

2. Responsabilidade penal por crimes tipificados na L. n. 7.716/1989.

A Lei n. 7.716/1989 tipifica entre vários crimes resultantes do preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, um de particular interesse na discussão em pauta. 

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.

Apesar de comumente confundido com o crime de injúria racial (art. 140, §3º, CP), o delito previsto no art. 20 da Lei de Racismo, pode ser facilmente diferenciado do primeiro quando observada a vítima deste e daquele delito. No caso de injúria racial, a vítima, ofendida em sua honra subjetiva, é sempre determinada; por outro lado, no art. 20 da Lei n. 7.716/1989, a vítima é um grupo de pessoas identificadas desde características de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, que são ofendidos, não enquanto pessoas determinadas e individualizadas, mas como membros do grupo coletivamente agredido.

Superada esta observação preliminar, nada impede a persecução penal daquele que, ciente da natureza ofensiva de uma postagem que induza ou incite a discriminação ou preconceito, divulga e propaga, desde seus comentários ou compartilhamento, o abjeto preconceito da postagem original.

Da mesma forma que nos crimes anteriores, ressalva-se que, se o compartilhamento se resume a divulgar a incitação ou induzimento ao racismo para, simplesmente, criticá-lo ou narrá-la, por implicar ausência do dolo específico exigido para a configuração do delito, desaguará na atipicidade da conduta, afastando a possibilidade de reconhece-la como criminosa.


3. (In)existência de concurso de pessoas no compartilhamento.

Em regra, o compartilhamento de comentários caluniosos, difamatórios, injuriosos ou racistas - ainda que presentes todos os elementos para justificar a responsabilidade penal do compartilhador - não é suficiente para fundamentar o reconhecimento de concurso de pessoas entre o criador da postagem original e compartilhador. Isso decorre do fato que, usualmente, não é possível afirmar um efetivo acordo de vontades entre o criador e o compartilhador.

No caso de inexistente o liame subjetivo entre o gerador de conteúdo criminoso e o compartilhador, cada um deles, nos limites de sua culpabilidade e por seus próprios atos, responderam isoladamente como autores em decorrência de um crime referente da postagem, e o outro de um crime derivado do compartilhamento, que bem podem possuir a mesma tipificação.

Por outro lado, reconhecida a existência de um liame subjetivo entre os dois (criador e compartilhador), de modo que um deles produz a postagem criminosa e o outro, segundo uma divisão de tarefas, toma para si a responsabilidade por divulgar o conteúdo criminoso nas redes sociais, nesta hipótese poderá ser afirmada a responsabilidade penal tanto de um quanto de outro, como coautores.

Considerações finais

Mesmo levando em conta a alta probabilidade de impunidade que cerca os delitos virtuais, é de se notar que, desde o ordenamento jurídico pátrio, somos responsáveis, civil e penalmente, não só pelo conteúdo que produzimos nas redes sociais, mas também pelo conteúdo que chancelamos e damos publicidade desde o compartilhamento. Sejamos, portanto, cautelosos.

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