terça-feira, 13 de maio de 2014

Putinhas abortistas e os limites da liberdade de expressão


Espalhou-se pela internet o vídeo da apresentação musical de uma banda anarquista/feminista chamada de PUTINHAS ABORTISTAS - sim, elas se designam desta maneira - em um programa da TVE do Rio Grande do Sul - sim, elas se apresentaram em uma emissora de TV pública que se dá como educativa.

A filmagem, reproduzida abaixo, permite uma interessante reflexão sobre os limites entre a liberdade de expressão artística e a incitação ao crime. Peço antecipadas desculpas por sujeitar os leitores a terrível provação de escutar tais barulhos que se pretendem musicais, porém, é recomendável para o debate que aqui se propõe.



Sobre a (precária) qualidade musical das Putinhas Abortistas, pouco se pode dizer além do óbvio: aqueles que concordam com o substrato ideológico da música, desculparão o desastre musical; quem não concorda, odiará por completo. Entretanto, cabe destacar que, por sorte do grupo anarquista/feminista, a liberdade de expressão artística, garantida constitucionalmente, não é seletiva a ponto de deixar desamparados aqueles que produzem ruído e o designam com música.

A liberdade de expressão é um dos mais elementares direitos garantidos constitucionalmente e  protegida de forma expressa contra a censura nos arts. 5º, IV e IX e 220 da Constituição Federal, assim como no art. XIX da Declaração Universal de Direitos Humanos. E como direito fundamental, merece ampla proteção jurídica.

A correta determinação do alcance da proteção constitucional pressupõe que o suposto de fato do direito fundamental - no caso, o que pode ser considerado como "arte" - seja precisado de forma amplíssima. Isso implica que não é possível excluir da proteção constitucional expressões artísticas de gosto duvidoso, de questionável valor estético ou simplesmente desconcertantes. 

Observando o disposto no art. 5º, IX, CF/88, determina-se que "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Portanto, desde uma adequada proteção do direito de expressão artística, decorre o reconhecimento de que a Constituição Federal garantirá, independentemente da qualidade estética, todas as formas de arte e suas expressões. Da 5ª Sinfonia de Beethoven ao desastre sonoro que é o barulho das Putinhas Abortivas. Pontua-se, então, que, juridicamente, deve-se considerar como arte aquilo que se produz com pretensão artística, seja qual for a qualidade do resultado. 

Evidentemente, não se afirma que uma música, pintura ou película não possam ser avaliadas desde um juízo estético. Afirma-se, isto sim, que esta avaliação estética não é relevante para afastar a proteção constitucional derivada do direito de expressão artística, tornando uma obra suscetível a censura e licença prévia.

Porém, ainda que vedada a censura, é importante destacar que a liberdade de expressão artística não é ilimitada, tampouco se constitui em salvo-conduto para anunciar o que lhe apetece, independentemente do conteúdo. Aqueles autores e/ou intérpretes que, eventualmente, produzirem e/ou cantarem músicas flagrantemente ofensivas a outros valores constitucionalmente protegidos (dignidade da pessoa humana, honra pessoal ou segurança pública), podem ser responsabilizados civil e penalmente.

Alguns exemplos de casos que ensejaram responsabilização criminal podem ser citados:

(1) Na apelação criminal n. 70012571659 julgada pela 5ª Câmara Criminal do TJRS, uma letra da banda Zunzir foi um dos fundamentos para justificar a condenação do vocalista e compositor pelo crime do art. 20, § 1º, da L. n. 7.7.16/89. Segundo o TJRS, restava evidente que o condenado estava utilizando a música para propagar e fomentar ideias nazistas e, por decorrência, incitando o racismo.

(2) A letra de "e por quê não?" de Bidê ou Balde foi considerada pelo TJRS (Agravo de instrumento n. 70013141262) uma evidente apologia à pedofilia e, a partir desta concepção, foi determinada multa como sanção e a proibição de sua veiculação, com base nos dispostos do ECA.

(3) No HC n. 89.244 RJ/STF, foi apreciado pedido de trancamento de ação penal movida contra McFrank por apologia ao crime em razão de uma canção que supostamente louvava a prática de roubos. O STF decidiu que existiam bases jurídicas para que a continuidade da ação penal.

Do reconhecimento que a liberdade de expressão artística não se constitui num direito absoluto e/ou ilimitado - nenhum direito fundamental pode ser assim compreendido - decorre que em situações de tensão deste com outros bens jurídicos constitucionalmente protegidos, é necessário lançar mão do princípio da proporcionalidade - conforme lições de Willis Santiago Guerra Filho - de modo a solucionar tais conflitos jusfundamentais.

Desde a máxima da proporcionalidade, pode-se pontificar que, não restando evidente a finalidade criminosa da obra musical, não se pode dizer da responsabilidade criminal do autor ou cantor da obra. Esse foi o entendimento do Procurador Geral da República (Processo n. 1.00.000.003194/2004-81) ao arquivar notitia criminis dirigida contra Gilberto Gil por suposta apologia ao crime decorrente da execução da música Three Little Birds de Bob Marley. Citando Júlio Fabrini Mirabete: "Não constitui apologia criminosa o ato de descrever o fato, de tentar justificá-lo ou de ressaltar qualidades reais ou imaginárias do criminoso, desde que não impliquem elogio pelo crime praticado". 

O Planet Hemp, notório pela menção ao consumo de Cannabis em suas músicas, foi absolvido de várias acusações, pelo entendimento que suas músicas, antes de estimular o consumo de entorpecentes, pretendem-se como expressões de discordância política e critica dirigida contra a política nacional de drogas. Esta ideia é reforçada pelo entendimento da AGU sobre a legalidade da marcha pela legalização da maconha, bem como recente decisão do STF. Segundo o voto do decano da Corte, Min. Celso de Mello:

"Desejo salientar, neste ponto, senhor Presidente, já me aproximando do encerramento deste voto, que a mera proposta de descriminalização de um determinado ilícito penal não se confunde com ato de incitação à prática do delito, nem como a de apologia de fato criminoso, eis que o debate sobre a abolição penal de determinadas condutas puníveis pode (e deve) ser realizado de forma racional, com respeito entre interlocutores, ainda que a ideia, para a maioria, possa ser eventualmente considerada estranha, extravagante, inaceitável ou, até mesmo, perigosa".

No caso da música da Banda Putinhas abortivas é possível visualizar dois pontos essencialmente problemáticos: (1) a defesa do aborto; e (2) a incitação ao vandalismo.

Sobre a defesa do aborto, destaca-se o seguinte trecho da música:

"Venha desconstruir o gênero junto com as Putinhas/Venha conscientizar e libertar a bucetinha/Em matéria de aborto, a gente sabe bem/O corpo é da mulher e a decisão também".

Superando qualquer discussão sobre a moralidade ou constitucionalidade da legalização do aborto, é caso de afirmar que nenhuma responsabilidade penal pode ser reconhecida desde tal trecho. O fato é que, apesar da menção à prática do aborto, não é possível observar uma expressa incitação ao crime descrito no art. 124 do Código Penal. Ademais, aplicando ao caso o mesmo entendimento da Excelsa Corte, que pontua a legitimidade do debate e da proposição de teses descriminalizantes, é impossível afirmar qualquer responsabilidade criminal das Putinhas Abortistas em decorrência de sua defesa do aborto como direito da mulher, pois tais opiniões encontram-se inseridas dentro do contexto da pluralidade de opiniões indispensável à própria noção de Democracia.

O maior problema, sob a ótica penal, reside, justamente, neste segundo trecho:

"Sou anarquista doida, pichadora e vida louca/Não me venha com moralismo você não vai calar minha boca/Vêm vandalizar, deixa de ser bundão/Se dá prejuízo é na conta do patrão".

Notando que o vandalismo pressupõe, ao menos, o chamamento para a prática de crime de dano (art. 163 do Código Penal), o que resta evidente com o trecho subsequente que destaca que o eventual "prejuízo é na conta do patrão", pode-se vislumbrar um caso de incitação ao crime (art. 286, CP).

Ainda que alguns românticos defendam a legitimidade do uso da violência (contra o patrimônio privado e contra a polícia) no contexto do direito de manifestação, resta evidente a completa incompatibilidade de práticas violentas com os pressupostos democráticos do debate político: tolerância, racionalidade, respeito aos interlocutores e, principalmente, seu caráter pacífico.

Nestes termos, sobre o trecho que incita ao vandalismo, não é possível acobertar as "declarações musicais" das Putinhas Abortistas sob o véu do direito de expressão artística.  Disso implicaria um evidente paradoxo com o princípio do Estado Democrático de Direito, uma vez que o ideal de pluralidade democrática é completamente incompatível com a permissão/legitimação da violência - mesmo que contra objetos - como forma de expressão de inconformismo político.

Em suma: a qualidade ou a falta de qualidade não podem ser utilizadas como critério para exclusão de uma determinada obra artística do suposto de fato da proteção constitucional da liberdade de expressão artística. Ainda que não seja admissível a censura prévia, é de se notar que o artista ou intérprete fica sujeito à responsabilização civil ou criminal, na medida de sua culpabilidade, quando extrapolar os limites de tal liberdade e atentando - de forma clara, evidente e intolerável - contra outras posições jusfundamentais constitucionalmente tuteladas.

Para saber mais: Aqui.

7 comentários:

  1. Excelente análise e apresentação do tema, professor! Parabéns pelo blog que difunde cada vez mais a boa crítica às questões hodiernas!

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  2. Caro Samuel, Obrigado pelas suas críticas sempre acertadas e pelo apoio.

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  3. Professor de onde estas criaturas surgiram.. Misericórdia!! Está certo que não se pode excluir determinada obra, mesmo a dita artística, porém em casos como esse é clara a incitação ao crime e total perda de valores. Talvez a censura não fosse tão ruim assim.

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    1. Caríssimo Anônimo (estranho escrever assim), apesar de concordar que as coisas não andam muito boas no que se refere à qualidade musical, não é nada pior, em matéria de liberdade de expressão, do que a música de uma nota só produzida pela censura. Mesmo bombardeado por tanta porcaria, censura nunca mais.

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  4. É uma pena não poderem excluir obras pela qualidade ou falta dela, teríamos uma limpa musical e artística muito benéfica para a sociedade..rs..sobraria pouca coisa. Em relação as Putinhas Abortistas, este grupo segue uma tendência atual, horrível, pois tenta a qualquer custo chamar atenção para suas causas e ideologias. O mundo está tão liberado para tudo, que as pessoas necessitam fazer coisas horrendas para se sentirem notadas. O que antigamente, uma nudez serviria como choque, atualmente necessita ser sexo explícito. E assim segue o baile.

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    1. Caro Abílio, o primeiro impulso, com certeza, pode até ser a repulsa, mas devemos notar que os países que promoveram ou promovem a censura tem uma produção artística incipiente ou irrelevante. Apesar de ficar chateado e, até, indignado com algumas obras, nada seria pior do que a censura. Ademais, concordo que a banalização libertina no qual a nudez, o sexo e o esporro perderam o significado contribui para a criação de uma cultura que se consegue dialogar através da apelação.

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    2. Essas são músicas que bradam ao Céu por vingança.

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