terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

PERGUNTA & RESPOSTA: O médico que notifica aborto praticado por sua paciente está violando o sigilo profissional?


PERGUNTA
O médico que informa caso de aborto praticado por sua paciente pratica o delito de violação de segredo profissional nos termos do art. 154 do Código Penal?

O CASO
Mais um capítulo no interminável debate sobre a legalização do aborto teve lugar na cidade de São Bernardo do Campo (SP). Por ocasião do atendimento de uma gestante, o médico pressionou sua paciente até o ponto em que ela confessou a prática de um aborto ilegal que interrompeu gestação de quatro meses. O médico, desconsiderando o sigilo profissional que acobertava a relação com sua paciente, denunciou o ocorrido para a autoridade policial. A paciente foi autuada em flagrante delito e liberada após o pagamento de fiança. Ainda segundo a paciente, ela foi pressionada pelo médico a confessar o ocorrido e teria sido ridicularizada pelos policiais que atenderam a ocorrência (FONTE).

O acontecido acirrou os ânimos, tanto dos defensores da legalização do aborto quanto que oferecem oposição à ampliação dos casos de abortos legais no Brasil. Enquanto estes aplaudiram a atuação do médico, saudando sua atuação como um ato de defesa da vida intrauterina, aqueles pontuaram que a notificação do aborto pelo médico constituiu-se em gravíssimo atentado contra a privacidade da paciente e inadmissível ofensa ao sigilo profissional.

A FUNDAMENTAÇÃO DA RESPOSTA
O escopo deste artigo não é a revisão dos argumentos favoráveis ou contrários à ampliação das hipóteses legais de aborto. Pretende-se aqui a solução de outro problema. Quer-se saber: O médico estaria autorizado a violar a cláusula de sigilo profissional que protege seu paciente ou a conduta constitui-se em criminosa violação de segredo profissional?

Para responder a esta pergunta é indispensável a análise preliminar das normas profissionais que balizam o sigilo médico. Conforme dispõe o Código de Ética Médica:

É vedado ao médico:
Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.
Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.

Soma-se ao disposto retromencionado as determinações constantes na Resolução CFM nº 1.605/2000:

Art. 1º - O médico não pode, sem o consentimento do paciente, revelar o conteúdo do prontuário ou ficha médica.
Art. 2º - Nos casos do art. 269 do Código Penal, onde a comunicação de doença é compulsória, o dever do médico restringe-se exclusivamente a comunicar tal fato à autoridade competente, sendo proibida a remessa do prontuário médico do paciente.
Art. 3º - Na investigação da hipótese de cometimento de crime o médico está impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo criminal.
Art. 4º - Se na instrução de processo criminal for requisitada, por autoridade judiciária competente, a apresentação do conteúdo do prontuário ou da ficha médica, o médico disponibilizará os documentos ao perito nomeado pelo juiz, para que neles seja realizada perícia restrita aos fatos em questionamento.

A análise das normas do Conselho Federal de Medicina, tanto do Código de Ética Médica quanto da Resolução CFM nº 1605/2000, permitem o reconhecimento de três situações que autorizam/obrigam o médico a revelar informações que teve conhecimento em razão de sua profissão. Sinteticamente, são elas:

a) Revelação por motivo justo. Tratam-se dos casos nos quais a mantença do sigilo ofende os princípios da não-maleficência ou da beneficência. a.1.) A violação do princípio da não-maleficência ocorreria em situações na qual a continuidade do segredo importaria em risco intolerável para os interesses essenciais da própria paciente ou de outrem, o que se dá, p. e., em situações nas quais um paciente psiquiátrico relata uma crível ameaça à vida de terceiro; a.2.) Uma violação do princípio da beneficência ocorreria naqueles casos em que a continuação do sigilo, apesar de não colocar em risco interesses do paciente ou de outra pessoa, impediria a fruição de uma situação da qual acarretaria considerável incremento da qualidade de vida do paciente, sem, por outro lado, qualquer outro inconveniente. Trata-se, este caso, de situação na qual a revelação do sigilo é absolutamente desprovida de qualquer caráter gravoso e da qual as únicas consequências seriam benéficas ao paciente.

b) Revelação por consentimento escrito do paciente. O sigilo poderá ser dispensado por consentimento informado e expresso do paciente constante em documento escrito que explicite os limites de divulgação da condição sigilosa.

c) Revelação por decorrência de dever legal. Refere-se às situações nas quais a legislação brasileira excepciona o sigilo do profissional sanitário estabelecendo a obrigação de informar a autoridade competente de fatos considerados de interesse público.

Levando em consideração os fatos noticiados e confiando na correção do relato jornalístico, pode-se, de pronto, reconhecer que no caso em pauta, a divulgação do aborto praticado pela paciente não se enquadra em nenhumas das duas primeiras hipóteses de exceção ao sigilo profissional do médico. 

A revelação não ocorreu acobertada por justo motivo, pois o crime de aborto, já praticado, exauriu a potencialidade lesiva do fato, não restando ao médico a justificativa alicerçada no princípio da não-maleficência. Tampouco enquadra-se em situação autorizada pelo princípio da beneficência, porquanto, na medida que é incapaz de evitar o crime já realizado, somente expôs a paciente a severas consequências jurídicas na seara penal. Dito doutra forma, a divulgação do segredo somente causou transtornos à paciente, sendo incapaz de remediar qualquer mal ou evitar qualquer conduta criminosa. Ressalte-se que é cristalino que não há de se falar em consentimento escrito da paciente.

Resta necessário, portanto, verificar se a conduta do médico que notifica o aborto praticado pela paciente encontra-se autorizada por imposição de dever legal que lhe obrigue a informar o segredo. 

Nos termos do ordenamento jurídico brasileiro, existem algumas poucas situações nas quais subsiste o dever médico de notificar fatos que teve conhecimento em decorrência da relação profissional com seu paciente, relativizando o segredo do profissional sanitário. Sem a pretensão de esgotar todas as possibilidades, destaca-se três situações mais usuais nas quais se reconhece o dever médico de informar as autoridades competentes sobre fatos que teve ciência no exercício de sua profissão:

a)  Denúncia de doença cuja notificação é compulsória (art. 269,Código Penal). 

Art. 269 - Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

b) Notificação compulsória de casos que envolvam suspeita ou confirmação de maus-tratos de criança ou adolescente (art. 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente).

Art. 245. Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente:
Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.

c) Comunicação compulsória de crime de ação penal pública (art. 66 da Lei de Contravenções Penais).

Art. 66. Deixar de comunicar à autoridade competente:
I – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício de função pública, desde que a ação penal não dependa de representação;
II – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal:
Pena – multa, de trezentos mil réis a três contos de réis.

De imediato, reconhece-se que o caso em pauta não se enquadra em nenhuma das duas primeiras hipóteses que impõem o dever legal de informação. Por evidente, o aborto não constitui-se doença cuja notificação é compulsória; também não se trata de caso envolvendo maus-tratos de crianças e adolescentes, uma vez que o feto não se enquadra nenhuma destas qualificações. Resta verificar a terceira hipótese.

A Lei de Contravenções Penais impõe aos funcionários públicos (art. 327, Código Penal) e aos profissionais sanitários o dever legal de comunicar a autoridade competente a ocorrência de qualquer crime de ação penal pública incondicionada. 

Nota-se que no Direito Penal brasileiro, os crimes de ação pena pública incondicionada são aqueles nos quais a legitimidade para a propositura da denúncia é do Ministério Público, que independe de qualquer manifestação de concordância do ofendido ou de seu representante legal para tanto. Destaca-se a redação do art. 100 do Código Penal:

Art. 100 - A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido.
§ 1º - A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça
§ 2º - A ação de iniciativa privada é promovida mediante queixa do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo
§ 3º - A ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal.
§ 4º - No caso de morte do ofendido ou de ter sido declarado ausente por decisão judicial, o direito de oferecer queixa ou de prosseguir na ação passa ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.

O Código Penal estabelece que os crimes de ação penal pública incondicionada constituem-se em regra no conjunto dos delitos previstos na legislação brasileira. Isso importa em reconhecer que, somente quando expressamente previsto, um delito poderá ser compreendido como de ação penal pública condicionada à representação ou como de ação penal privada. 

Assim conhecendo a regra, pode-se afirmar que o delito de aborto, em qualquer uma das modalidades previstas (arts. 124, 125 e 126 do Código Penal), é crime de ação penal pública incondicionada. Essa informação, por si só, não responde a pergunta se o médico tinha o dever legal de notificar a autoridade policial da realização de aborto por sua paciente. 

É de capital importância para a resolução do problema a observação que, ainda que tanto o funcionário público (art. 327, CP) quanto o profissional sanitário tenham o dever de notificar a ocorrência de crime de ação penal pública incondicionada do qual tenham conhecimento em razão do exercício de suas tarefas,  este dever recai sobre um e outro de forma diferenciada.

O funcionário público possui o dever legal de comunicar a prática de fato definido como crime de ação penal pública incondicionada, seja qual for a situação. Por outro lado, o médico somente será obrigado a informar a prática de crime do qual teve ciência no exercício de sua profissão, se e somente se, a revelação do sigilo médico não exponha o paciente a procedimento criminal. E se o médico, além de profissional sanitário, for também funcionário público? Nesta hipótese, que acontece, p. e., em situações nas quais o médico atende pelo SUS, prevalece a qualidade de profissional sanitário, porquanto a regra do art. 66. II da Lei de Contravenções Penais faz-se cláusula de exceção da norma disposta no art. 66, I, do mesmo diploma legal.

Como a notificação do aborto expõe a paciente a procedimento criminal, entre o interesse público de conhecer a prática do crime e o sigilo médico, prevalecerá este em detrimento daquele.

Sendo assim, considerando como completas, precisas e verdadeiras todas as informações noticiadas sobre o fato, o médico que notificou o aborto praticou o delito previsto no art. 154 do Código Penal, pois não estava autorizado a violar o sigilo médico, isso porque sua ação não se enquadra em nenhuma das hipóteses excepcionantes do segredo profissional.

A RESPOSTA
O médico está impedido pelas imposições éticas e legais decorrentes do sigilo profissional de informar a prática de crime - mesmo os de ação pública incondicionada - quando a revelação do segredo expor seu paciente a procedimento criminal. No caso em pauta, portanto, o médico não poderia ter violado a confiança da paciente. Tal comportamento não só ofende as normas éticas que pautam o exercício da medicina mas, também, constitui-se em ilícito penal, a saber,o delito previsto no art. 154 do Código Penal ("Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa").

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