quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

As bobagens que nos contam: A suposta legalidade do "aborto masculino".


Como afirmado em postagem anterior (aqui), a declaração do Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, reascendeu o debate sobre a legalização do aborto no Brasil. Este é o ponto positivo da declaração. Neste ambiente político que dá mais importância para questiúnculas e perfumarias, é revigorante para a própria democracia que a população se preocupe com questões tão cruciais como aquelas que se apresentam nas discussões sobre o aborto como o início da proteção jurídica da vida e o próprio valor da existência do ser humano. Por outro lado, o ponto negativo reside na proliferação de falácias e falsas informações que contaminam o debate e o arrastam para o lodaçal do nonsense.

Isso é o que se dá com a postagem replicada acima. Tenta-se fazer uma defesa do "aborto feminino" através de uma comparação com, o assim designado, "aborto masculino", dando a acreditar que se o homem tem o "direito de abandonar o filho", então a gestante deveria ter o direito de interromper a gestação. A imagem se propagou nas redes sociais como uma peça publicitária pela legalização do aborto, sendo compartilhada por milhares de pessoas em pouquíssimo tempo, fazendo crer que um número considerável de pessoas julga como corretas as proposições em defesa do aborto tal qual apresentadas na imagem. O que pretende-se neste texto é demonstrar que, apesar da força retórica desta imagem que foi compartilhada por uma legião de usuários das redes sociais, suas proposições não resistem a uma análise mais rigorosa. Vejamos as falácias que permeiam tal imagem e suas congêneres.

O termo "aborto masculino" foi identificado pela primeira vez no ensaio "The male abortion: the putative father's right to terminate his interests in and obligations to the unborn child", escrito por Melaine G. McCulley no periódico The Journal of Law and Policy, volume VII, n. 1 de 1998 (FONTE). No sentido original, o texto advoga que, existindo o direito feminino de abortar, por qualquer razão, até o terceiro mês de gestação - como é o caso nos Estados Unidos da América - deveria ser reconhecido uma suposta prerrogativa masculina para que ao homem fosse possível solicitar a isenção de qualquer obrigação para com o gestado e, posteriormente, ao filho nascido. Tal direito masculino de isenção das obrigações parentais seria uma decorrência do direito feminino de negar-se a maternidade como seria garantido pela legalização ampla do aborto. A ensaísta sustenta que se a mulher possui o direito de negar-se a maternidade pelo aborto, os homens deveriam possuir o mesmo direito, desde que o peticionasse neste sentido até o limite do terceiro mês de gravidez.

No Brasil, o termo "aborto masculino" foi apropriado pela militância pró-escolha que defende o aborto como um direito da gestante, sendo utilizado como forma de denunciar uma suposta conivência de uma sociedade patriarcal e machista com os milhões de casos de "pais" que abandonam seus filhos, negando-lhes os fundamentais direitos decorrentes da filiação e, em especial, o suporte afetivo, moral, intelectual e material devido pelos ascendentes aos seus descendentes. Através da comparação do "aborto masculino" com o "aborto feminino", alguns pretendem denunciar uma suposta hipocrisia de uma sociedade tolerante com o abandono praticado pelo homem e, especialmente, raivosa com a possibilidade de legalização do aborto como direito da mulher. Vejamos se esta linha de argumentação possui algum alicerce nos fatos ou coerência qualquer.

Preliminarmente cumpre destacar que é impossível fechar os olhos para um fato notório: No Brasil, a prática do abandono afetivo, moral, intelectual e material apresenta-se com vergonhosa recorrência. São 5,5 milhões de crianças brasileiras que não possuem o nome do pai em seu registro civil (FONTE). Tal cifra de proporções pantagruélicas constitui-se numa calamitosa situação que ofende um dos mais básicos direitos da personalidade que é o de conhecer sua filiação. Por isso, é absolutamente necessário chamar a atenção da sociedade para um problema que aflige uma miríade de milhões de crianças abandonadas à própria sorte por seus próprios pais. Mas vejamos outra imagem:


Por um lado é correto e premente denunciar o abandono que aflige milhões de crianças brasileiras, no que se reconhece a correção da primeira proposição. Por outro, destaca-se a incorreção da segunda que afirma que "o aborto masculino já foi legalizado faz muito tempo". Este chamado "aborto masculino" - entendido como o abandono do filho - não foi legalizado. Trata-se de um comportamento juridicamente reprovado pelo Direito brasileiro, conduta que, em muitos casos, poderá ser suficiente para tipificação da prática como criminosa. Demonstraremos.

Inicialmente, o ordenamento  jurídico pátrio reconhece o direito à filiação como um direito fundamental decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana. Tal direito é expressamente garantido no texto constitucional:

Constituição Federal: Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
[...]
§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Para dar eficácia a tal direito fundamental, a legislação infraconstitucional reitera o referido direito essencial e estabelece instrumentos jurídicos para combater as conduta inseridas no contexto do chamado "aborto masculino". Para evidenciar esta afirmação, destacam-se os dispostos presentes no art. 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente e no art. 1609 do Código Civil.

Estatuto da Criança e do AdolescenteArt. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Código Civil: Art. 1609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito:
I – no registro de nascimento;
II – por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório.
III– por testamento, ainda que incidentalmente manifestado;
IV – por manifestação direta e expressa perante o Juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objetivo único e principal do ato que o contém.

Para demonstrar que estas normas jurídicas não constituem-se em letra morta no Direito brasileiro, ressalta-se a súmula n. 301 do STJ, com a seguinte redação: "Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade". Neste sentido, apresenta-se julgado do STJ:

CIVIL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PROVA. I- A recusa do investigado em submeter-se ao exame de DNA, marcado pelo juízo por 10 (dez) vezes, ao longo de quatro anos, aliada à comprovação de relacionamento sexual entre o investigado e a mãe do autor impúbere, gera a presunção de veracidade das alegações postas na exordial. II- Desconsiderando o v. acórdão recorrido tais circunstâncias, discrepou da jurisprudência remansosa deste Superior Tribunal. III - Recurso especial conhecido e provido. (STJ RESP141689 – DJ 07/08/00, Recurso Especial 1997/0052010-2)

Além disso, cumpre destacar que a recusa de pagamento do devedor de alimentos judicialmente fixados importa no único caso de prisão civil admitida no ordenamento jurídico brasileiro (art. 5º, LXVII, CF/88). O que deixa patente o grau de reprovabilidade jurídica reservado àquele que pratica o chamado "aborto masculino".

Conforme demonstrado, resta evidente que o Direito brasileiro não é conivente com a conduta reprovabilíssima daquele que se nega a reconhecer os próprios filhos, determinando, inclusive, que em caso de injustificável negativa em colaborar com a investigação de paternidade, deve-se impor a presunção de veracidade da alegação de paternidade em favor da criança. Noutras palavras, o chamado "aborto masculino" não é um direito exercido extrajuridicamente pelos homens brasileiros, tampouco é comportamento aceito ou tolerado, apresentado-se no mundo jurídico como conduta reprovável sobre a qual recai um conjunto de eficazes mecanismos jurídicos hábeis para a correção ou mitigação da situação de abandono paterno.

O chamado "aborto masculino" não somente é reprovado nas esferas do Direito Constitucional e do Direito Civil. Cumpre salientar que a conduta do pai que abandona seu próprio filho, negligenciando os deveres elementares decorrentes do estado de filiação, em muitos casos, se consubstancia em delito, sendo, também, reprovado penalmente.

É o caso do "abandono material" que está penalmente tipificado no art. 244 do Código Penal:

Código Penal: Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo:
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País.
Parágrafo único - Nas mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada.

Ressalte-se que aquele que abandona materialmente o próprio filho (menor de 18 anos ou inapto ao trabalho) merece, inclusive, uma pena superior àquela que é reservada à conduta de aborto praticado pela própria gestante.

Código PenalArt. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena - detenção, de um a três anos.

Como fica incontroverso pela análise dos dispositivos legais retromencionados, o "aborto masculino" não somente é reprovado criminalmente, como o é com mais severidade do que o "aborto feminino". O chamado "aborto masculino" - enquanto conduta de abandonar os filhos - pode constituir-se em omissão merecedora de pena de detenção de 1 a 4 anos e multa; o chamado "aborto feminino" - compreendido como a conduta de praticar aborto em si ou permitir que outro lhe pratique - merece pena de detenção de 1 a 3 anos. Fica portanto demonstrado que a sociedade brasileira não fechou os olhos para o problema do "aborto masculino". Também é patente que não é conivente com a negligência dos deveres parentais, como quer dar a entender as falaciosas postagens retromencionadas.

O absurdo das postagens que apresentam a equivocada ideia de uma sociedade que supostamente tolera o "aborto masculino" e reprova o "aborto feminino" não resiste a uma análise mais detida e o nonsense de tais proposições resta ainda mais evidente. Vejamos:

As postagens destacadas neste texto trazem uma mensagem implícita: afirmam a hipocrisia de uma sociedade que tolera o aborto masculino, mas reprova o aborto feminino. Depois de demonstrada a incorreção da proposição que afirma que o "aborto masculino" é tolerado, cumpre a pergunta: o que, então, propõem os autores de tais mensagens?

A primeira hipótese: O "aborto masculino" deveria ser tratado com a mesma severidade que o "aborto feminino". Se esta é a mensagem que os autores pretendem transmitir, a relação entre as proposições resta completamente desprovida de sentido. Como demonstrado anteriormente, o ordenamento jurídico brasileiro reprova categoricamente a negligência dos pais para com os filhos, reservando, inclusive, para os casos de abandono material, uma pena mais gravosa do que aquela prevista para o auto-aborto ou consentimento para o aborto. Estariam os autores da postagem defendendo que a pena para o abandono material deveria ser suavizada?

A segunda hipótese: O "aborto feminino" deveria ser tratado como a mesma severidade que o "aborto masculino". Se esta é a mensagem que os autores pretendem transmitir, resta ainda maior o nonsense. Eles partiriam da equivocada proposição que o "aborto masculino" estaria legalizado para sustentar que, por imperativo de igualdade, o "aborto feminino" também deveria ser elevado à condição de direito da gestante. Como demonstrado, o "aborto masculino", não somente, é reprovado pelo ordenamento jurídico brasileiro, como o é com mais severidade que o "aborto feminino". Fica a pergunta: Se o aborto feminino deveria ser tratado com a mesma severidade que o aborto masculino, estes autores estariam advogando que a pena do crime de aborto praticado pela gestante (art. 124, CP) seja elevada ao mesmo patamar do crime de abandono material (art. 244, CP)? Ou seja, desejam que a pena do aborto seja ainda mais severa como ocorre em situações de abandono material?

Ademais, cumpre salientar que no Brasil não existem grupos ou organizações que possam ser levados a sério e que, em suas pautas de reivindicações, professem o absurdo de uma legalização do abandono material como prerrogativa masculina. Tampouco observa-se movimentação minimamente relevante em defesa do direito do "aborto masculino". Qualquer movimentação ou discurso neste sentido seria, por amplo consenso, taxado de desatino. Pelo contrário, pode-se dizer que existe uma ampla concordância social sobre a elevada reprovação moral que deve recair sobre o comportamento omissivo de um pai quando negligente em suas obrigações mais fundamentais. 

Por certo, alguns poderiam objetar dizendo que os casos de "aborto feminino" seriam mais punidos que os de "abandono material",. Tal objeção, entretanto, estaria irremediavelmente divorciada dos fatos. Os processos fundados em situações de abandono material são muito mais recorrentes dos que os de aborto praticado ou consentido pela gestante. Considerando o universo de ações penais, as punições decorrentes de condenação por aborto praticado por gestante ou por ela consentido são estatisticamente raras. 

Outros poderão dizer que a criminalização do aborto no Brasil provoca, todos anos, um genocídio de gestantes. É isso que querem fazer crer aqueles que dizem que faleceriam mais de 200 mil mulheres em razão de abortos clandestinos, uma outra mentira que já foi refutada em artigo anterior (veja aqui).

O fato é que estas postagens que comparam o chamado "aborto masculino" com o "aborto feminino" são fundadas em falsas premissas e completamente desprovidas de sentido quando analisadas as relações entre suas proposições.

Em suma, que venha o debate, mas que venha isento de mentiras e falácias como estas.

Um comentário:

  1. A propósito de mais uma ideologia assassina, pró-aborto, a propalada mentira de que há legalização de "aborto masculino" de 5,5 milhões de crianças, no Brasil, não se sustenta sob nenhuma perspectiva. O que, de fato, interessa é que tais crianças são as vítimas, cujos algozes são os seus genitores.

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