terça-feira, 3 de março de 2015

Jovem morre depois de ingerir 30 doses de vodka em festa open bar. Existe responsabilidade penal dos organizadores do evento?


O CASO:
Um lamentável acontecimento teve tempo neste sábado (28/02/2015) e lugar na cidade de Bauru (São Paulo). Durante a realização da festa open bar "Inter Reps" verificou-se que vários participantes ingeriram quantidades pantagruélicas de bebidas alcoólicas, tanto que seis pessoas teriam sido internadas em decorrência de coma alcoólico. Dentre os internados, um jovem de 23 anos faleceu em decorrência de severa intoxicação etílica e pelo menos outros três continuam internados em estado grave. 

Segundo informações noticiadas para mídia, o falecido teria ingerido mais de 25 (vinte e cinco) a 30 (trinta) doses de vodka em pouquíssimo tempo. A rápida ingestão desta quantidade maciça de bebida etílica teria acontecido durante uma competição para determinar quem seria capaz de tomar mais doses de vodka no menor espaço de tempo possível. 

No domingo (01/03/2015), a Polícia Civil realizou a prisão de dois organizadores da referida festa. Eles foram acusados pela prática de homicídio com dolo eventual (FONTE).

A PERGUNTA:
De pronto reconhecendo a tragédia que é o falecimento, especialmente para a família, dirige-se o rumo do texto para a análise jurídica dos acontecimentos: A pergunta é, fundamentalmente, a seguinte: Os organizadores da festa open bar podem ser penalmente responsabilizados pelo ocorrido?

A FUNDAMENTAÇÃO DA RESPOSTA:

1. A relevância da omissão

O crime de homicídio (art. 121 do Código Penal) é um crime comissivo que, excepcionalmente, permite sua realização de forma comissiva por omissão, ou seja, enquanto crime omissivo impuro (ou impróprio). 

Na forma comissiva, exige-se que o(s) autor(es) pratiquem um comportamento hábil para a realização do verbo típico ("matar"), restando consumado quando da ação praticada decorra uma relação de causalidade que vincule a conduta a um resultado fatal. Nos crimes comissivos, portanto, viola-se um mandamento normativo que impõe um dever de abster de qualquer comportamento que uma vez realizado lesa ou coloca em perigo o bem jurídico tutelado. É de se reconhecer que os fatos, tais quais apresentados, não se enquadram na descrição de um homicídio na modalidade comissiva. Resta verificar sobre a possibilidade de um crime omissivo impuro.

Na modalidade comissiva por omissão, hipótese de crime omissivo impuro, o(s) autor(es), a reprovação penal não decorre da violação de uma norma proibitiva, mas sim do não cumprimento do dever de garante. O art. 13, §2º do Código Penal estabelece os critérios normativos para a determinação da relevância da omissão:

Art. 13. [...]
§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tinha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

Para que a omissão seja penalmente relevante é necessário identificar dois elementos essenciais. A possibilidade fática de evitação do resultado e reconhecimento do dever de evitá-lo que decorre da posição de garante. Por certo, a evitação do resultado fatal era possível, bastando, por exemplo, que os organizadores oferecessem aos participantes serviços emergenciais de primeiros-socorros.

O dever de garante também encontra-se presente, uma vez que a realização de eventos do gênero impõe aos organizadores o dever de zelar pela vida, saúde e segurança dos participantes conforme preceitua o  art. 14, §1º, II do Código de Defesa do Consumidor. 

É evidente que a obrigação de evitar o resultado não é absoluta, ainda que no Direito do Consumidor seja objetiva, independente, portanto, de dolo e culpa do fornecedor. No caso, a omissão é identificada quando o organizador falha em garantir o padrão mínimo de segurança que é exigido na realização de um evento. Neste sentido:

O Código não estabelece um sistema de segurança absoluta para os produtos e serviços. O que se quer é uma segurança dentro dos padrões da expectativa legítima dos consumidores. E esta não é aquela do consumidor-vítima. O padrão não é estabelecido tendo por base a concepção individual do consumidor, mas, muito ao contrário, a concepção coletiva da sociedade de consumo. (CAVALIERI apud BENJAMIN, Manual de Direito do Consumidor, 2012, p. 521)

Não se trata, pois, de estabelecer um dever absoluto de evitação, mas de firmar a responsabilidade do organizador do evento pela concretização de um aparato de segurança razoável e relativamente eficaz para garantir a segurança dos participantes do evento. 

Disso não decorre que os organizadores devem policiar quantas doses os consumidores podem ou não ingerir. Trata-se de afirmar a obrigação de levar em conta a possibilidade de consumo excessivo e de estar preparado para evitar ou minimizar, através de medidas razoáveis de segurança, os riscos decorrentes da intoxicação alcoólica.

Alguns, noutro sentido, poderiam argumentar que a responsabilidade objetiva dos organizadores deveria ser afastada por verificação de causa de exceção disposta no art. 14, §3º do Código de Defesa do Consumidor: "O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: [...] II - culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro". Tal objeção, entretanto, não se sustenta. Mesmo afirmada a responsabilidade pessoal do consumidor que se entrega à ingestão abusiva de bebida etílica, é importante destacar que era razoável exigir dos organizadores o oferecimento de um aparato de segurança que levasse em conta a possibilidade deste abuso etílico, especialmente, em uma festa open bar. Dito doutra maneira, ainda que alguma culpa possa ser depositada na pessoa que abusou de substância etílica, subsiste a responsabilidade dos organizadores, enquanto tinham a dever de levar este risco em conta e oferecer aos participantes um serviço que, pelo menos, minimizasse os riscos de intoxicação por abuso de substância alcoólica. Por decorrência deste entendimento, ainda que exista culpa do consumidor, ela não é exclusiva e não afasta a responsabilidade dos organizadores que são negligentes em oferecer segurança que garanta um padrão razoável de minimização de riscos.

Mas as considerações anteriores, que afirmam a existência da evitabilidade do resultado e o dever de garante dos organizadores do evento não são suficientes para afirmar a imputação de homicídio. É indispensável que exista um nexo de causalidade entre a ausência de um sistema de segurança e a ocorrência do resultado fatal, de forma que seja possível afirmar, com um grau razoável de certeza, que se os organizadores cumprissem seu dever, provavelmente o risco do resultado fatal seria minimizado e a morte possivelmente evitada. 

IMPORTANTE destacar que não existem informações precisas sobre o assunto no texto, não estando claro se os organizadores tomaram alguma precaução (p.e., oferecimento de primeiros-socorros ou atendimento médico in loco) ou se as precauções eram suficientes para cumprir o dever objetivo de cuidado. Caso tenham tomado as precauções necessárias e suficientes, não existe responsabilidade penal, ocorrendo lamentável acidente do qual não decorre a identificação de comportamento criminoso. Por outro lado, se não existia uma rede de segurança ou, se existente, era insuficiente, ainda é possível trabalhar a hipótese de responsabilidade penal dos organizadores.

2. O dolo eventual

Mesmo trabalhando a hipótese de que existe uma omissão penalmente relevante que consubstancie os elementos típicos da descrição do delito de homicídio praticado de forma comissa por omissão, mister é verificar a tipicidade subjetiva da conduta. 

Se por um lado o Direito do Consumidor permite a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços pelos danos decorrentes da prestação ao consumidor, o Direito Penal pauta-se pelo princípio da culpabilidade, demandando que a conduta penalmente relevante seja praticada mediante dolo ou culpa (Responsabilidade Subjetiva).

Uma breve digressão sobre dolo e culpa faz-se necessária.

Os crimes dolosos, nos termos da lei, podem, por sua vez, serem divididos como praticados mediante dolo direto (quando o agente quis o resultado) ou eventual (quando assumiu o risco de produzi-lo). O dolo direto pressupõe um elemento cognitivo e outro volitivo. O elemento cognitivo depende da representação mental da conduta a ser praticada, no qual ele escolhe os meios necessários para a realização de um resultado, bem como as consequências diretas e indiretas decorrentes de tal comportamento. O elemento volitivo demanda que o autor, deseje a prática de tal comportamento na persecução do resultado almejado, aceitando os danos colaterais necessários que se façam decorrência dos meios escolhidos. O dolo eventual, por outro lado, difere-se do dolo direto, pelo fato de que o agente, ainda que antecipe mentalmente que de sua conduta seja possível ou provável a produção de um resultado especialmente reprovável, ele, ainda que ciente de tal possibilidade, não repudia a realização de tal comportamento, pelo contrário, assume o risco de produzi-lo. Digno de destaque é que a mera verificação que o resultado era previsível ao agente que deu causa através de seu comportamento, não é suficiente para a consolidação do dolo eventual. 

A modalidade culposa, por sua vez, é determinada como uma infração de dever de cuidado, na qual o agente atuando de forma imprudente, negligente ou imperita, atua com tal leviana desconsideração com as regras de cuidado que tal infração justifica e fundamenta a sua punição na modalidade culposa. Os crimes culposos são, usualmente, classificados em crimes com culpa consciente e culpa inconsciente. O primeiro caso ocorre quando o agente, mesmo intelectualmente ciente dos perigos que podem decorrer de sua conduta descuidada, continua a praticá-la, esperando, entretanto, que a providência ou sua habilidade sejam suficientes para evitar qualquer resultado indesejado. No segundo caso, a culpa inconsciente pressupõe que o agente que atua desconsiderando a regras de cuidado o faça sem, no entanto, prever os eventuais resultados lesivos que podem dela decorrer, mesmo quando juridicamente tal previsão lhe é exigível.

Superada as preliminares terminológicas, pode-se agora atacar um problema deveras recorrente. Qual o limite entre o dolo eventual e a culpa consciente? Tanto num, quanto noutro caso, o agente previa, desde antes da realização de seu comportamento, que de sua atuação era mais ou menos provável a derivação de um resultado especialmente reprovável. Ora, no caso do dolo eventual, é necessário demonstrar que o agente, apesar de tal previsão, era completamente indiferente ao resultado provável, de forma que desde tal absoluta desconsideração com os valores jurídicos tutelados pelo Direito Penal, assume os riscos de produzi-lo de forma tão reprovável que tal indiferença é, com justiça, equiparável ao dolo direto. Por outro lado, na culpa consciente, o agente, infringindo o dever de cuidado e prevendo as possíveis consequências de sua ação imprudente, negligente ou imperita, espera, sinceramente, que qualquer sinistro dela decorrente não ocorra, seja por superconfiança em suas habilidades, seja por injustificável crença na Providência.

Supondo que os organizadores foram omissos na implantação de um plano de segurança que estabelecesse uma proteção razoável dos participantes do evento, é mais razoável supor a ocorrência de um homicídio culposo do que a de outro praticado com dolo eventual. Parece exagerada a suposição de que, ocorrendo a negligência dos organizadores, eles teriam aceitado com indiferença patológica a ocorrência de um resultado morte.

Confiando na correção da narrativa ofertada pelos meios noticiosos, o caso parece ser mais congruente com a hipótese de negligência criminosa, na qual os organizadores não observaram as regras elementares de cuidado para a realização do evento, equivocadamente confiantes que na injustificável crença que de sua negligência não decorria maiores problemas.


É claro que este entendimento é mais baseado em suposições e informado no senso comum do que noutras coisas. É importante ressaltar que estas suposições são baseadas em um relato parcial e conciso obtido em veículos jornalísticos e que a autoridade policial, trabalhando a hipótese de homicídio com dolo eventual, pode ter em mãos elementos de convicção que justifiquem a escolha por esta tese. Mas, novamente, unicamente com base nos fatos narrados, a tese de homicídio com dolo eventual parece ser deveras inadequada.

RESPOSTA:
Mesmo reconhecendo a responsabilidade pessoal daquela pessoa que voluntariamente ingere quantidades maciças de bebidas alcoólicas, subsiste, para os organizadores do evento, o dever jurídico de oferecer uma rede de segurança que antecipe e minimize os riscos decorrentes do abuso etílico, ainda mais em uma festa open bar, nas quais é previsível que ocorram casos de intoxicação por abuso de substância alcoólica.

Se no curso da investigação ficar demonstrada a negligência dos organizadores e o nexo de causalidade entre a omissão e não evitação do resultado; neste caso é possível a afirmação da responsabilidade penal dos organizadores. 


Salienta-se, novamente, que baseado somente nos fatos narrados, a hipótese de homicídio com dolo eventual parece ser exagerada, prevalecendo como resposta mais provável, a imputação de homicídio culposo.

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